"Dominando Jesus e aposentando o Espírito"Marcelo BarrosQueridos irmãos e irmãs na fé em Cristo, Acabo de ler a Declaração "Dominus Jesus" que traz a assinatura do Prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger. Este texto me provoca um profundo sentimento de desconcerto, amargura e incredulidade. É difícil acreditar que, neste ano do Jubileu, em contradição com todo o trabalho que o papa João Paulo II está fazendo, alguém de Roma possa dar ao mundo um documento como este, com declarações e afirmações tão infelizes, tanto no plano espiritual e humano, como até doutrinal.
1. O Documento parte da preocupação missionária. Jesus mandou pregar o Evangelho a todas as criaturas (n. 1). Diz que a missão universal da Igreja "realiza-se com a proclamação do mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo e do mistério da encarnação do Filho. São estes os conteúdos fundamentais da fé cristã (n.2). Aí cita o texto que não por acaso chama-se de "Símbolo" de Nicéia-Constantinopla. Digo "não por acaso", porque, lendo esta Declaração, tenho a impressão de que o texto confunde o símbolo com a realidade que este evoca. Reduz a revelação cristã à formulação de determinados conteúdos doutrinais, que Jesus veio ensinar. Não se abre ao sentido profundo que o evento de Jesus revela e ao qual a própria formulação do Símbolo da fé reenvia. Concretamente, o que significa para os cristãos confessar a Deus como Pai, Filho e Espirito e afirmar a "encarnação" da Palavra de Deus? A fé é uma atitude ou postura referente à Vida que envolve todos os seres humanos ou é apenas um conceito-categoria que se refere ao saber dos intelectuais (neste caso, teólogos, provadamente católicos) de profissão? Esta Declaração parece reduzir Jesus Cristo a um professor de catecismo que veio só para ensinar. Fazendo isso com Jesus, a missão da Igreja fica também reduzida. O texto esclarece que "A Igreja, ao longo dos séculos, proclamou e testemunhou com fidelidade o Evangelho de Jesus". Será alguma alusão "condenatória" aos pedidos de perdão do papa e à chamada "purificação da memória" que João Paulo II tem feito?
2. A Eclesiologia que este documento revela é contra toda a teologia mais contemporânea, mesmo de autores europeus mais credenciados. Afirma que "Jesus não fundou apenas uma comunidade de discípulos, mas constituiu a Igreja como mistério salvífico e os fiéis são obrigados a professar (o grifo vem no texto) que existe uma continuidade histórica entre a Igreja fundada por Cristo e a Igreja Católica. Esta é a única Igreja de Cristo..." (n. 16). Ressuscitou o Concílio Vaticano I com sua Constituição "Ad Petri Cathedram" ensinando a Igreja como sociedade perfeita e esvaziou o Vaticano II. Este oficializou a fórmula: "subsistit in" (A Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica). A atual Declaração pretende mostrar que o Concílio diz isso para não dizer. Como a Congregação da Doutrina da Fé já havia condenado no livro do padre Leonardo Boff (nota 56) o subsistit in deve ser interpretado de forma exclusivista e confirmando o Vaticano I. Certamente, a alusão à notificação da Congregação ao irmão Leonardo Boff, único teólogo citado no texto, não contém nenhuma ameaça implícita a algum teólogo que continue a pôr em dúvida que o Cristo se manifesta no poder da Igreja Romana. Esta afirmação de que Jesus fundou literalmente a Igreja Católica me lembrou uma declaração do Cardeal Ottaviani, então presidente da mesma Congregação da Doutrina da Fé, em tempos anteriores ao Concílio Vaticano II. Recebendo a visita do papa João XXIII na "Suprema Sagrada Congregação do Santo Ofício", o cardeal fala em nome da cúria romana, "este único e glorioso corpo, tão glorioso e tão antigo que parece ter sido contemporâneo dos apóstolos nos seus primórdios e tão jovem em sua atividade, cheia de ardor, de zelo e fecundidade que parece ter nascido ontem" . Não parece esta afirmação de que Jesus não fundou apenas uma comunidade de discípulos? Deve ter instituído a Igreja Católica, o Direito Canônico e, como dizia o cardeal Ottaviani, a Cúria Romana.
3. O texto trata da unicidade (só ela) e da universalidade salvífica do Cristo e da Igreja. Pretende combater qualquer relativismo e reafirmar o caráter de verdade absoluta do mistério do Cristo e da Igreja. O capítulo 1 tem como título "O Caráter pleno e definitivo da revelação de Jesus Cristo". Procurando heresia, um inquisidor já perguntaria pelo Espírito Santo. Não tem lugar nisso? Foi mandado a uma boa aposentadoria? Escutei de alguns o termo "cristomonismo". Será que tem alguma coisa a ver com isso? Na história das heresias, não me lembro de nenhuma que tenha separado o Cristo do Espírito. De fato, cinco parágrafos depois, ainda no mesmo capítulo se fala do Espírito que ensina aos apóstolos e, por meio deles, a toda Igreja esta "verdade total" (n. 6), aqui compreendida como o conjunto de doutrinas que o Cristo ensinou e a Igreja Católica codificou a partir do aparato linguístico-simbólico da sua cultura. No número 7, o texto alude à famosa diferença entre Fé e Religião, ou como o texto diz "crenças". Parece que tal distinção vem de Karl Barth, teólogo protestante de uma Igreja que "nem merece propriamente este nome de Igreja" já que não passou pelo teste da sucessão histórica dos bispos e não reconhece o papa como a Igreja Católica ensina. A distinção é entre Fé teologal como adesão à revelação, graça que vem de Deus a nós e, por outro lado, a crença nas outras religiões como caminhos humanos de busca de Deus. O limite deste Documento é querer preliminarmente decidir dentro de quais canais atua a graça e sopra o Espírito de Deus. Isso não revelaria certa dose de megalomania? Nos Evangelhos, a fé salvífica não é crer que Deus é uma, três ou mesmo quatro pessoas. Jesus diz à cananéia ou ao centurião romano: "a tua fé te salvou". Qual o conteúdo da fé dessas pessoas? Simplesmente que poderiam ser curadas? Comparado com o conceito de fé subjacente neste Documento, o que Jesus qualifica como fé é, ao mesmo tempo, mais simples e plural, no sentido de que toma expressões muito diferentes de acordo com as pessoas e situações. Ele acolhe a fé de Pedro que diz: "Tu és o Filho de Deus" e também a da mulher hemorroísa que nossos teólogos liquidariam como superstição (Se eu tocar ao menos a franja do seu manto...). Com todas suas variações, a fé tem em comum a "confiança e o "consentimento" ao amor incondicional de Deus, qualquer que seja a religião, cultura, experiência humana em que se manifeste. Não se pode contrapor a Fé e a Religião, colocando simplesmente uma Igreja, (mesmo a Católica), como se fosse manifestação pura, exclusiva da fé revelada. Quer queira o cardeal Ratzinger ou não, ela é também uma expressão histórica, cultural como as outras. Uma Igreja fiel ao seu mandato, não pode querer para si nada que não seja o simples testemunho da Verdade para sempre inscrita no nome de Jesus: "È só Deus que salva". Toda religião, igreja, instituição, grupo, ou pessoa que pretenda tirar de Deus a palavra da salvação para torna-la seu próprio monopólio, blasfemaria como a antiga Babel e se cobriria de ridículo diante de Deus. A fé é revelada em palavras humanas e mantemos este tesouro em vasos de barro que são nossas religiões. A Declaração identifica tanto Jesus, Reino e Igreja que "a verdade que é o Cristo se impõe como autoridade universal" e "a única verdadeira religião se verifica na Igreja Católica e Apostólica, governada pelo sucessor de Pedro" (n. 23). Daí, compreendo que ele coloque a Igreja não do lado das respostas humanas à revelação e sim como objeto e plenitude da própria revelação.
4. Não conheço nenhum teólogo cristão que sustente, como afirma o texto: "o caráter limitado, incompleto e imperfeito da revelação de Jesus Cristo" (n. 6). O texto que mais me deu esta impressão foi justamente esta Declaração. Querendo salientar a universalidade e unicidade do Cristo e da sua revelação, de tal forma a aprisiona na racionalidade dos dogmas eclesiásticos e da expressão da fé ocidental, a limita tanto ao tipo de cristianismo que a Igreja Romana mantém que, de fato, dá a impressão contrária a qualquer universalidade profunda e unicidade no sentido de que uma coisa é o Cristo e outra é a Igreja. Querendo dizer que nós cristãos já encontramos o que as outras religiões ainda procuram, o texto dá a impressão de fechar Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) na gaiola muito estreita e fechada da cultura ocidental e da tradição latina. Já li pronunciamentos do papa João Paulo II chamando de sagrados e inspirados os textos de outras religiões. Certamente, escrevendo isso, este texto quis criticar o papa. Conforme contou à agência Fides, Rafael I Bidawid, patriarca da Babilônia dos caldeus, em uma recente audiência privada no Vaticano, o patriarca foi visitar o papa, acompanhado de dois dignitários muçulmanos. Um deles trazia nas mãos um exemplar do Corão. Quando o papa percebeu, inclinou-se e beijou o livro sagrado. (Cf. La Vie, n. 2809/ 01/ 07/ 1999, p. 66). Falando dos ritos e cultos dos seguidores de outras religiões, o texto diz que "algumas orações e ritos podem assumir um papel de preparação ao Evangelho, enquanto ocasiões ou pedagogias que estimulam os corações humanos a se abrirem à ação de Deus" (pressupõe-se que já não estão abertos). "Não se lhes podem atribuir a origem divina nem eficácia salvífica... e certos ritos, enquanto dependentes da superstição ou de outros erros são mais propriamente um obstáculo à salvação" (n. 21). Diante dessas afirmações, a única conclusão possível seria pensar que o papa João Paulo II errou quando, diversas vezes, falou: "A crença dos membros das outras tradições religiosas é efeito do Espírito de verdade que opera além dos confins visíveis do Corpo Místico do Cristo" (R. H. 6). Afirmou ainda várias vezes e em lugares diferentes que "toda oração autêntica, seja em qual for a tradição religiosa, é inspirada pelo Espírito Santo".
5. Na carta anunciando o Jubileu (Tertio Millenio Adveniente) o papa sonhava em chegar ao ano 2000 vendo se darem passos decisivos e novos para a unidade das Igrejas. Esta Declaração parece ser um antídoto contra tal risco. O papa queria fazer um encontro reunindo crentes das religiões abraâmicas. Este texto o impedirá disso por um bom tempo. A não ser que o papa prove que não percebeu o que estava aprovando. Há pouco tempo, a imprensa descobriu que o presidente do Brasil assinou um documento que legitimava uma grande corrupção econômica. O presidente se desculpou dizendo: "eu assinei sem ler". Essa Declaração da Congregação da Doutrina da Fé, o papa nem assinou. Lendo nesta Declaração que o valor do Diálogo Inter-religioso é ser uma estratégia para melhor anunciar a doutrina católica, penso que o documento desdiz dezenas de afirmações do papa e dois documentos do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso dos quais um é aludido na Declaração (nota 7). É preciso avisar as Igrejas da comunhão com o patriarcado latino que este documento é cismático. Pretendendo absolutizar uma única expressão de fé e identificando o Reino de Deus com a Igreja Romana, embora use expressões do Concílio, o invalida. É urgente avisar as outras Igrejas que o Decreto Unitatis Redintegratio e a Carta Ut Unum Sint do papa João Paulo II continuam valendo. Muitas vezes, evangélicos e pentecostais céticos se perguntam se o diálogo da Igreja Católica é sincero. Temem que seja apenas um novo modo de Roma voltar a exercer controle sobre as outras Igrejas. É preciso garantir que, ao menos, o papa e o Concílio foram sinceros. Quanto aos irmãos e irmãs de outras religiões, como fazer com que não pensem que o diálogo provocado pela Igreja Católica visa apenas uma estratégia para melhor lhes anunciar o Cristo? O texto diz que é apenas um meio para a missão "ad gentes". Não é justo que tantos anos de trabalho sejam anulados e todas as declarações e gestos do papa sejam diminuídos. Talvez ainda haja católicos que não sabem discernir em que consiste o ministério do Bispo de Roma ou, pior ainda, atribuem aos inúmeros documentos que saem dos escritórios vaticanos a mesma autoridade que compete ao Papa. Imaginemos se bispos ou padres, tão carentes da Eclesiologia de uma Igreja Comunhão e que ainda não vêem a Igreja como essencialmente Igreja particular... se eles se apoderam de um texto desses achando que é procedente, entramos mal no século XXI.
6. Para concluir: O mais triste de tudo isso é "o rosto de Deus" que este docuemnto reflete. Parece licito perguntar: em que Deus acredita o redator deste documento do Vaticano? Será que, alguma vez, ele verdadeiramente escutou falar do "Abbá", o Paizinho de Jesus de Nazaré? Onde está neste texto romano a alegria cantada por Jesus pelo fato de que Deus revela seus segredos aos pequeninos que não sabem nem conseguirão nunca acompanhar os mecanismos de poder contidos no dogmatismo formulado por suas Igrejas? Por que um texto, vindo de ministros dos quais esperaríamos a confirmação na fé é tão pessimista e fechado à ação da graça e à liberdade do Espírito de Deus? Graças a Deus, a fé que Jesus nos ensina é exatamente o contrário: Eu posso morrer, sair de cena, porque é o Pai a última Palavra e ele encontrará o jeito de reiterar seu Sim à vida da humanidade. Um irmão me lembrou que no Evangelho de ontem (4a feira, 06/09), Jesus manda os demônios se calarem, mesmo quando estes expressam uma verdade: a confissão de fé nele. Mas, são espíritos diabólicos (divisores). O espírito deste texto me parece precisar de um bom exorcismo. De minha parte, fico orando pela Igreja para que ela se deixe, cada dia, converter e aceite até morrer, se o preço for a vida da humanidade. É preciso que nunca mais um povo possa, chorando, cantar como neste poema maya: "... Quando os estrangeiros chegaram aqui Jesus veio anunciar a vida para todas flores e cores e raças e culturas e religiões. Somente, assim, as Igrejas podem dar a prova da sua fidelidade ao Evangelho, sem correr o risco de ser confundidas com os escribas de alguma Congregação romana. Mantenhamo-nos firmes no testemunho do amor de Deus e na confiança de que, um dia, seja-nos dado o direito que os bispos latino-americanos pediram em Medellin: "Que se apresente cada vez mais nítido o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, despojada do poder e corajosamente comprometida com a libertação de todo ser humano e do ser humano por inteiro" (Méd 5, 15). Nesta esperança, abraço-os/as como amigo e companheiro O irmão Marcelo Barros
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