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Escritura Sagrada

Adileia PRATES OLIVEIRA


 

 

Um bispo decidira aplicar uma de suas preciosas horas matinais no projeto missionário da periferia de uma cidade de porte médio da América Latina. Ele saiu de seu palácio episcopal vestido com todos os paramentos possíveis e cheio de motivação pelo momento ímpar no qual levaria a mensagem de Deus para aquela família necessitada que o Divino Espírito Santo lhe indicasse. Ao chegar à entrada de um beco, pediu, gentilmente, que seu motorista lhe aguardasse ali mesmo, desceu do veículo e dirigiu-se a pé para a casa que deveria ir.

Sem motivo algum parou diante de uma humilde residência, soltou sua maleta no chão e bateu palmas. Muitos cachorros foram recebê-lo, todos latiam, nenhum demonstrou qualquer perigo a sua integridade física e nem atentaram contra os seus paramentos. O bispo foi bem recebido, sentou num sofá cheio de buracos que mais parecia um vaso sanitário, cheio de crianças curiosas ao seu redor, tendo diante de si uma senhora e duas jovens meninas.

Antes que qualquer um falasse, o bispo tomou a palavra e começou a falar de sua Diocese, sobre o seu trabalho episcopal, o Projeto Missionário e aproveitando o ensejo emendou uma penca de assuntos: o valor da família, a necessidade de participar da Igreja, a importância dos sacramentos, a obrigação em colocar em prática os mandamentos divinos, o esforço e a renúncia que cada lar deve fazer para pagar o dízimo... tudo bem explicado tal como se fosse o melhor e mais didático professor de teologia, chegando a citar frases em latim, que nem mesmo os cães entendiam.

A mulher e as jovens prestavam firme atenção as suas palavras, inclusive para aquelas mais estranhas. Do lado das crianças a atenção não era a mesma, entre risos e cochichos tentavam adivinhar o que era cada uma daquelas peças do figurino. No final do sermão, quando as mulheres pensavam que poderiam falar um pouco de suas vidas, o Bispo ergueu-se de supetão, abriu a mala, tirou um aspersório e um livro de bênçãos. Abriu o livro e saiu pela casa jogando pingos d’água e palavras bentas pela sala, pelos quartos sem portas, a cozinha, o banheiro úmido e o pequeno pátio do fundo. As crianças saltitavam, aos risos, atrás daquela pequena procissão, sendo repreendidas pela Mulher da casa.

Voltando ao ponto de partida, ele guardou os materiais de trabalho e se pôs a procurar a Bíblia em sua mala a fim de concluir a visita com uma leitura das Sagradas Escrituras. Mexeu e remexeu na mala e nada da Bíblia aparecer. Tirou papéis, documentos, cartões, requerimentos, ofícios, equipamentos digitais, o Direito Canônico, o Catecismo, a Liturgia das Horas e outro livrão grande, mas nenhum deles era a tão desejada Bíblia.

Com certo grau de constrangimento o Bispo entregou, pela primeira vez, a palavra às suas anfitriãs perguntando-lhes se poderiam lhe emprestar uma Bíblia. Sem fazer uso da palavra concedida a Jovem Mais Nova foi até o quarto e voltou com um enorme, desgrenhado, caótico e meio sujo livro e o entregou ao Bispo. Ao tomar aquela estranhíssima obra em suas mãos o único homem do recinto começou, em silêncio, a analisar a consistência dogmática da obra literária.

Durante a análise preocupada do Bispo o silêncio era quase total desde a mulher até os cães, passando pelas crianças, os jovens e o próprio ruído do vento. Sequer parecia haver seres dotados de respiração no recinto. O único som que quebrava o silêncio eram as gotas de suor hierárquico que caiam da testa do bispo no velho e seco papel da enorme Bíblia.

O pavor episcopal nascia do caráter herético da obra eclética, que misturava em si, textos diversos, de forma totalmente desordenada. O livro do Gênesis pertencia à edição católica, o Êxodo provinha da editora de uma congregação evangélica que antes de terminar já introduzia o Evangelho segundo o Espiritismo, cortado pela letra do hino da umbanda, seguida de lendas indígenas e frases escritas a mão em folhas em branco.

Se esta mistura de religiões já era considerada grave, o mais grave ainda estava por vir, Sua Excelência Reverendíssima não acreditava no que via, o sacrilégio era enorme, e aquela pobre família havia praticado algo que a excomungava da verdade divina. A cada folhada o Bispo lia frases de Che Guevara, trechos de Marx, letras de músicas sandinistas e zapatistas, estrofes de cordel, linhas de poemas marginais, poesias de Dom Pedro Casaldáglia e atas de reuniões de uma cooperativa de recicladores. Sem aviso prévio estes pedaços de textos eram interrompidos por um pedaço dos Salmos, uma dúzia de versículos de algum profeta misturada com a letra de alguma musiquinha infantil.

Quanto mais tentava entender aquele livro estranho menos o bispo o compreendia. O livro de Jó era cortado por uma peça do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. Os livros das Crônicas eram recheados de trechos de diversos jornais sindicais, políticos, operários e cartilhas de formação de lideranças populares. “Afinal de contas o que era aquilo?” – perguntava-se o mitrado.

O Bispo não conseguia entender as razões que haviam motivado alguém a anexar um panfleto contra a homofobia no Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo Segundo São Lucas; nem o que havia originado a junção dos Cânticos dos Cânticos com um livro de Simone de Beauvoir. “Logo ela, uma ateia? Mais ateus no livro que deveria ser sagrado! Inadmissível”, pensava o bispo!

Ele não entendia a mistura entre Frantz Fanon e Sofonias; Jeremias e Gramsci; Fidel e Gedeão; Mateus e Dom Oscar Romero, fotos de mártires e o livro do Apocalipse; a conclusão do Êxodo no final da obra de Gustavo Gutiérrez; o relato da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo seguido do Paraíso Destruído de Bartolomeu de Las Casas acompanhado do livro das Lamentações; as ações de Jesus mescladas com as obras de Paulo Freire; os relatos das primeiras comunidades cristãs conjugados com a obra de Mariátegui; o horror das guerras e exílios entrecortados pelas Veias Abertas da América Latina do Galeano; na conclusão da obra caótica havia uma série de letras de músicas da resistência à Ditadura Militar, sobretudo Chico Buarque de Holanda.

Vendo a autoridade eclesiástica apavorada com a Bíblia em mãos, a mulher tentou explicar-lhe a origem inusitada da obra, porém, antes disto teve de ajuda-lo a se acalmar. A Jovem Mais Velha foi buscar uma água com açúcar, as crianças foram buscar uma toalha para secá-lo do suor, enquanto isso a Senhora com a Jovem Mais Nova tiravam-lhe o excesso de paramentos.

Passado o impacto mais forte, mas ainda muito abatido, o recém-despurpurado escutava atento, agora em trajos civis, a explicação da Senhora sobre o misterioso livro que se confundia com a narrativa da vida daquelas mulheres.

A Senhora lhe contou em detalhes como ela, suas filhas e netas haviam sofrido violência doméstica praticada pelo seu ex-marido. Contou, ainda, como o ex-esposo havia abandonado o lar depois que as duas jovens filhas haviam se tornado mães solteiras, com um mês de diferença uma da outra. Ela contava ao bispo o quanto sofrera, a sua voz vacilava, mas ainda assim, tinha na pontinha de seu olhar e no canto de sua boca um ar de felicidade, gerado pelo abandono libertador de seu carrasco doméstico. As jovens filhas confirmavam os relatos de sua mãe, e complementavam o rol dos sofrimentos femininos com as suas sofridas experiências juvenis.

Os relatos começavam a deixar claro ao Senhor Bispo a situação daquela família, porém, isso não lhe dizia nada sobre o livro herético, que em última instância, era o que mais lhe importava. “E o livro?” Conseguiu, muito sem ar, balbuciar a sua solene voz. A mulher prosseguiu relatando as dificuldades, agora se concentrando na sua situação socioeconômica. Sob esta temática surgiram relatos, da Senhora e de suas filhas, sobre desemprego, fome, endividamento, subemprego, exploração, longas jornadas de trabalho, ausência de direitos básicos, abuso de poder dos patrões e temas afins.

Do outro lado o Bispo escutava sem deixar de pensar baixinho: “E o amor à santa ortodoxia? Quem colocou esta pobre família no caminho da perdição? De onde tiraram este livro herético?" Porém, como o Bispo nada falasse a mulher continuava a sua prédica, adentrando-se agora num assunto mais animado. Ela falava entusiasmada de uma tal Çooperativa de Reciclagem de resíduos sólidos, na qual ela e as suas filhas trabalhavam, juntamente com outras pessoas da comunidade periférica.

A exaltação era tal que havia contagiado as jovens que falavam vibrantes juntamente com a mãe, sobre todos os assuntos referentes à cooperativa ao mesmo tempo: a geração de renda, o trabalho cooperado, o cuidado ecológico para com a vida em sua totalidade, as reuniões, os momentos de autoformação do grupo, a criação da escolinha para as crianças dos cooperados, as parcerias com as universidades, comunidades eclesiais de base, políticos populares, ONGs, grupos ecológicos, feministas, afrodescendentes e os diversos movimentos sociais.

Atordoado com os acalorados relatos o Bispo se pôs a dizer:

“Está bem, está bem, mas eu não quero saber disto, eu quero saber daquele grande problema...”

Nisso foi interrompido pela Senhora que lhe respondeu:

“Ah sim! Problemas existem, falta de crédito, a dificuldade que tivemos em conseguir o dinheiro para começar o projeto da cooperativa de reciclagem, os problemas de relacionamentos humanos que afetam a unidade do grupo, a ausência do poder público que só se faz presente quando nós fazemos pressão, a falta da consciência da população em separar o lixo, o desânimo que se abate no pessoal e faz a gente quase perder a fé”.

Sem mais paciência gritou o Bispo:

“Mas é justamente esta fé que me preocupa! A Senhora e seu bando estão longe da fé verdadeira, da ortodoxia cristã, da sã doutrina, de tudo aquilo que a nossa linda história cristã preservou com o sangue daqueles que morreram para defender os nossos dogmas! Diga-me logo, de onde a senhora tirou este maldito livro? Quem está distribuindo uma obra tão herética como essa?” concluiu o Purpurado aos berros, ao que prontamente uma das crianças retrucou: “Gritar é coisa de mal educado!” para o riso discreto das mulheres da sala.

A Senhora tomou a palavra e começou a falar emocionada, em tom poético, tal como se estivesse possuída por um espírito divino, suas palavras soavam como sobre-humanas. Ela discursou longamente sobre a salvação do planeta, a reciclagem da humanidade, a sua passagem de lixo humano para a condição de gente, sobre a mística que alimentava o projeto da cooperativa, e, sobretudo, pela importância que aquele livro tinha na manutenção da esperança dos cooperados, não obstante todas as dificuldades internas e externas.

O elevado tom espiritual da fala desta mulher do povo não foi forte o suficiente para sensibilizar o coração do líder religioso. Ele não deixava de insistir em perguntar sobre a origem e os demais detalhes do tal controvertido livro. Como o assunto se prolongava, a Jovem Mais Nova tomou a palavra e contou o que o Bispo tanto almejava saber. Ela contou-lhe que certo dia havia chegado à cooperativa, dentre os papeis deixados para a reciclagem, uma Bíblia. Sua mãe havia encontrado o livro e como mais gente havia se interessado pelo mesmo julgaram, de comum acordo, partilhá-lo tal como quem partilha o pão. Cada membro da cooperativa levou algum pedaço da Bíblia para casa.

“Sacrilégio!” soltou espontaneamente o Bispo e completou: “Onde se viu, rasgar uma Bíblia!” A Senhora contrapondo-se à autoridade religiosa disse: “Não rasgamos, partilhamos. Se Jesus quis ser partilhado no pão, acho eu que Deus não ficou brabo em ser partilhado pela palavra.” Ao que respondeu o Bispo em tom de interrogatório policial: “Mas e este monte de outros textos que não pertencem à Bíblia e que estão aí misturados!?” A Jovem Mais Velha tomou a frente e respondeu: “O senhor é homem de Deus e não sabe que Ele fala de muitos jeitos? Pois então, como cada cooperado ficou com um pedaço da Bíblia cada um foi completando com os papeis que juntava da reciclagem, um trecho de livro, de um poema, uma música, texto de outra Bíblia, enfim... tudo que a gente lê e gosta a gente acrescenta aí na nossa Escritura Sagrada.

“Mas então foram vocês que fizeram esse livro?” perguntou o bispo. Ao que respondeu a Senhora: “Sim nós fizemos o livro e ele nos fez”. O Bispo iria falar e a Filha Mais Jovem interrompeu o seu intento anunciando: “Tal como no passado o povo fez a Bíblia e a Bíblia fez o povo”. Diante destas falas o Bispo se calou e se retirou de imediato e em silêncio, deixando para traz sua maleta, seus livros, papéis e paramentos. Correu até o carro, foi para o seu Palácio episcopal sem dizer uma palavra, passou o dia em silêncio e sem comer, no outro dia voltou a comer, mas continuava mudo e trancado na Capelinha de sua residência. Na final daquele mês de oração e reflexão o bispo quebrou o silêncio. Saiu de casa a pé para celebrar a missa dominical na catedral, onde chegou com um resto de Bíblia na mão. Na missa motivou os fieis de sua diocese a fazerem o mesmo que aquela mulher e seus companheiros cooperados haviam feito: partilhar a bíblia distribuindo-a em pedaços para aqueles que não a têm e complementá-la com novos textos que expressem a atual revelação de Deus na história.

 

Adileia Prates Oliveira

Enfermeira na defesa da saúde pública.

Rosário do Sul – RS

 


 



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