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MULTIPLICAÇÃO DOS PÃESMateo 14, 13-21 y 15,32-39; Marcos 6, 30-44 y 8, 1-10; Lucas 9, 10-17; Juan 6,1-14Yara Maria CAMILLO
- E então, Paulo, o que você achou? - Não sei... Você conhece essas conversas. Tudo muito bonito no começo, e depois... Eu ando meio descrente, Pedro. - Mas aquele rapaz, o Beto, fala de um jeito que dá confiança. - Esperança. - É, deve ser. - Você não tem jeito, Pedro. Já levou tantas e continua aí, pondo fé em todo mundo. - E a gente vai fazer o quê? Tem que dar uma chance pra quem diz que quer ajudar... Cuidado com a vala. Distraído, Paulo quase ia pisando no esgoto que corria a céu aberto, na rua principal do Jardim Orly, como acontecia em tantas favelas da zona sul de São Paulo. - Eu acho que você dá muita trela pra esse pessoal, Pedro. - Só quando eu acho que tem a ver. - Tem a ver com o quê? O discurso do tal Beto não é muito diferente dos outros. Fala mansa eles têm, você sabe muito bem. Era o começo de um samba do Waldir, feito numa tarde em que, liderado por Pedro, o povo do Orly tinha posto os politiqueiros do Maluf pra correr, anos atrás. - Vamos ver o que acontece... O Beto prometeu que na semana que vem chega o material pra construção da sede. - Nós não queremos esmola, e sim uma solução pras coisas. - Pois a sede é o primeiro passo, Paulo. Um lugar pra gente se encontrar, discutir os problemas do bairro. - Sei não... - Tem umas moças que vão dar aula de Teatro e Música pra molecada... - Isso não enche barriga. - E também uns professores pra dar aula pros meninos que não conseguiram vaga na escola. E dois médicos... - O de criança, tudo bem. Mas o de mulher... Quem de nós vai ser louco de mandar nossas neguinhas pra um velho safado apalpar, Pedro, me diga. Quem de nós? - Você viu como o velho falou. No começo, ele vai visitar as casas, ensinando as mães a prevenir doenças, lavar as mamadeiras direito, ferver as fraldas, fazer soro caseiro... Com isso, vai ganhando a confiança das mulheres. - E os maridos? - Calma, Paulo. Há tempo para tudo. Vamos apostar no Beto e na gente dele, vamos fazer um mutirão pra construir a sede... - E quem vai querer trabalhar no sábado e domingo, depois de penar a semana inteira num emprego filho da puta? Não vai ser fácil. - Difícil é convencer você. Vê se me ajuda, Paulo. - Tá bom, eu vou juntar o pessoal. Se der errado, vai ser só mais um tiro n'água, como tantos. - Mas pode dar certo. Parando na frente do Bar do Tino, os amigos se olharam. - Sabe o que me faz ter esperança, no Beto? O jeito dele falar, como se desse um impulso, uma partida no motor. Um motor que é nosso, Paulo, muito nosso. - Já disse que vou juntar o pessoal. - Mas vê se não passa essa descrença pra eles. Senão, ninguém aparece. - Tá. Vamos tomar uma? - Não posso mais, Paulo, você sabe. Pedro se despediu do amigo e foi para o barraco onde morava. Na memória, umas palavras do Beto: - Não dá pra trabalhar o Social sem a Arte... Tem o alimento que mata a fome, e o outro, que enche a alma. Pedro não sabia bem porque, mas concordava. Deitou na rede e sonhou com o Jardim Orly que ele queria. Dormiu, e dormiu fundo. Acordou com batidas na porta e um zum-zum de gente que chegava. - Viemos conversar aqui, Pedro. Abriu os olhos e viu Paulo, Zeca, Waldir e a servente da escola. - Vão se acomodando. - E então, Pedro, qual é o assunto mesmo? Pedro começou a falar, e mais gente chegou. O barraco parecia pequeno, mas era como coração de mãe: cabia sempre mais um, mais uns. - Vocês sabem que não suporto politicagem, nem conversa mole. Mas a idéia da sede parece uma coisa boa. - Falando em coisa boa, não tem nada pra beber? - Vamos conversar primeiro, minha gente. - Eles vão dar cesta básica? - A gente não tem que ganhar, e sim que fazer. - Fazer o que, e de que jeito? - É pra isso que estamos aqui. Pra decidir. Se a gente construir a sede... - Com que grana? - Com trabalho. O material, o Beto consegue. - E pra que ele vai fazer isso? - A Ong dele trabalha assim. Eles entram com o material, nós com a mão-de-obra. Dão os professores de Teatro, de Música, de escola... E a gente dá os meninos. - Menino é o que mais tem, por aqui. E desempregados. - Tem curso para desempregados, também. E médico. - Médico de mulher... - Ah, Pedro, eu que não mando minha Rosa, nem as meninas, pra doutor nenhum bolinar. - O velho vai começar ensinando a cuidar dos nenéns. - Isso não precisa. Toda mulher nasce sabendo. - Mas tem neném que morre, por falta de cuidado. - E de fome? Tem algum médico contra a fome, lá na turma do Beto? - Porra, não avacalha. - Bom, pessoal, se o material chegar, vocês topam construir a sede? Não havia quem não topasse. - E de quem vai ser essa sede? - De todo mundo, oras. Mais gente chegava. O movimento no barraco de Pedro chamava atenção. Meninos punham as caras nas janelas. Mulheres vinham procurar os maridos, saber o que estava acontecendo. Até Padre Leonardo, que tinha ido soltar os garotos da Capoeira, presos na véspera, apareceu para dar uma espiada. - Chegue mais, padre. Como foi, lá no Distrito? - Prometi ao delegado que os moleques vão se comportar. Mas o homem disse que, na próxima, eles baixam Febem. O padre ganhou lugar de honra na reunião, que a essa altura se estendia até o quintal. Era outro que tinha idéias malucas; vivia falando de uma igreja mais perto do povo. Pedro chegou a achar que aquela presença era um sinal divino. Teve certeza, quando Padre Leonardo apoiou a idéia e levou a coisa adiante: - Pessoal, a gente precisa decidir o que vai acontecer nessa sede, quando ficar pronta. - Eu sempre quis um lugar pra ensinar a mulherada a fazer ponto cruz - arriscou Esmeraldina, meio tímida. - Um curso para bordadeiras. E o que mais? - O Zeca é azulejista de primeira. Está desempregado, mas podia ensinar quem quisesse... - Outro curso. Quem mais? - Eu - disse Helena, professora em Santo Amaro. - Como esse ano só peguei aula de manhã, posso ensinar à tarde... Uma faisquinha de entusiasmo se acendia. Quem chegava, se inteirava da coisa pelos outros. Meninos se encarregavam de passar a notícia: - Vamos ter uma associação de bairro, que nem lá em Santo Amaro. - E qual político está bancando? - Ninguém, oras. Mas um tal de Neto vai ajudar. - Não é Neto, moleque. É Beto. - E o Padre Leonardo gostou da idéia. - Diz que a gente pode... A centelha era um fogo na palha. A sede, que nem existia, foi ficando com os horários lotados de aulas, festas, reuniões. Alguma coisa começava a nascer. A tarde caía. Pedro foi até a cozinha, abriu o armário e fez o inventário: duas latas de sardinha, cinco pães amanhecidos. Abriu as latas, pôs os peixinhos num prato, pegou os pães, voltou à sala. Deu com os olhos grandes dos meninos. Virou pra Rita Baiana, que estava por ali: - Comadre, dá isso pros meninos. Despachada, ela rebateu: - Não vai dar pro começo, compadre. Vou em casa pegar uns tomates. Waldir pescou a coisa no ar e avisou que ia buscar uns chuchus. E cebola? Ninguém tinha uma cebola sobrando? A servente da escola, sim. E umas batatas... - Pra engrossar o molho. Alguém se lembrou de um pedaço de abóbora, reservado para o almoço de domingo. E um vidro de pimenta, que não podia faltar. E a farinha, onde já se viu comer sem farinha? O barraco pulsava de gente que entrava e saía. Um chegante perguntou: - É aqui a festa? - É. Você só trouxe a boca? Não tem nada sobrando, na cozinha? - Sobrando, nunca. Mas vou ver... - Gente, precisa de mais panela. - Panela vazia é o que mais tem, lá em casa. A noite caía, quando tudo ficou pronto. As duas latas de sardinha e os cinco pães tinham rendido um banquete. Alguém fez graça, quando Padre Leonardo abençoou a comida e agradeceu a Deus. Uma mulher mandou o engraçadinho calar a boca. Com a corda toda, o padre chamou os meninos do catecismo para rezar o São Francisco das Chagas, Pai da pobreza, não deixe faltar o que pôr na mesa. Pedro começou a servir os pratos, tigelas, o que houvesse. Passava para as mulheres, que passavam para os outros, até que todos receberam sua porção. Waldir, que na volta de casa tinha trazido o violão e a cachaça, puxou um samba de breque. Uma morena faceira, de vestido branquinho como os lírios do campo, soltou as ancas e as asas dos pés. De alma leve, Padre Leonardo comentou com Zeca: - Nem Salomão, em toda sua glória, se vestiu como essa menina. - Quem é Salomão, padre? Eu conheço? - Não, filho, nem eu. A roda de samba esquentava. A lua crescente coroava a festa que, com um pouco de fé, lembraria a multiplicação dos pães e dos peixes. Assim pensava Padre Leonardo, que arriscava um Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade, entre um gole e outro. Rezava para si, para ninguém, para todos. Também Pedro rezava a seu modo, pensando que no dia seguinte, quando as barrigas roncassem, aquela gente continuaria alimentada. De outro alimento. Outro alento. A sede já estava pronta, dentro de cada um. O mais, seria trabalho. Trabalho, e não emprego. E baldes de Boa Vontade. ACCÉSIT del Concurso de Páginas Neobíblicas convocado por la Agenda Latinoamericana-Mundial'2003 en su VIIIª edición. Vea la nueva convocatoria que hace la Agenda'2004 (XIª edición).
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