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Pregação prática na praça

Eliézer OLIVEIRA


 

 

“Se nada der certo na minha vida, mendigarei” dizia eu de brincadeira. E foi o que me aconteceu. Desemprego, preconceito, falta de oportunidades, abandono familiar, opressão dos opressores e dos oprimidos e lá estava eu, na sarjeta, na rua, quase só. Digo “quase” porque Deus e a minha cachorrinha Chicota sempre estavam comigo. Ele me aquecendo a alma e ela me aquecendo o corpo. Eu era agora um ser a mais entre o povo da rua, destes que perambulam por aí sem rumo, dividindo o meu pão com Chicota e a minha vida com Deus, os únicos que eu confiava.

Bati em tanta porta e nenhuma se escancarou. As dondocas cristãs abriam a frestinha e já me alcançavam a comida num potezinho de margarina. As damas da caridade, que são mais damas do que caridosas, davam o sopão para a gente, mas não sentavam no meio fio do passeio, não comiam de nossa comida e nem davam um abraço na gente, e muito menos emprestavam seus ouvidos para as nossas histórias. Eu comia a sopa por necessidade, mas dizia para elas “eu não confio em vocês, só em Deus e na Chicota”, e elas faziam chacota e pouco caso de mim.

Depois de muito perambular fui morar na praça, no centro da cidade, endereço nobre demais para pobre. Minha vizinhança era importante: a Igreja Matriz, a Prefeitura, o Fórum, a Câmara de Vereadores, o principal Banco da cidade, o Teatro, e as grandes lojas. Eu e Chicota, no banco da praça, na marquise da Igreja, na volta dos restaurantes, nas mesas vazias de gente e cheias de desperdício, o nosso sustento. Não entrava em nenhuma repartição pública ou privada onde Chicota não podia ir. “Se Chicota não pode entrar eu também não entro”, gritava eu. O mais doido é que, mesmo sendo criatura divina, Chicota não podia entrar, sequer, na Igreja. Até lá havia a famosa placa: “proibida a entrada de animais”. O que os humanos pensam que são? Um tipo de animal diferente?

Mas Chicota e eu não se aborrecia, ora pois, se não podemos ir até Deus é porque talvez Deus lá não esteja. Daí a gente descobriu um Deus diferente, presente noutro lugar, errante junto com a gente. É estranho, nosso Deus parecia com a comida – se o senhor não entendeu, já lhe explico. As pessoas se empanturravam de comida ao ponto de sobrar e a gente comia dos restos, que, por sinal, alimentavam muito bem a gente: Chicota e eu. Na Igreja as pessoas se empanturravam de Deus, na saída jogavam fora o jornalzinho da celebração e a gente se alimentava dele. Eu sempre lia as partes da bíblia para Chicota e a danada me escutava atenta, abanando o rabo, parecia mais fiel que muito bicho-homem.

Destas leituras Chicota e eu fomos percebendo que Deus estava nas árvores da praça; no canto dos passarinhos; nas crianças brincando; nos velhos cansados e abandonados jogando cartas; nos casais de namorados e nos seus amassos quentes e cheios de vida; na gente mesmo e nos outros moradores de rua; nas prostitutas, nos garis, nos comerciantes informais e todos os outros que trabalhavam na praça; na solidariedade de quem via, parava e até conversava com a gente.

O mais legal foi quando a gente pegou os restos de notícia e começamos a ligar o que dizia no jornal do outro dia (que sempre era colocado no lixo), com aquilo que a gente lia no jornalzinho da Igreja e mais com aquilo que a gente via na vida. Daí sim a coisa ficou boa. Melhor do que isto, só mais do que isto – já lhe explico. O “mais do que isto” foi quando os outros moradores de rua e estropiados pela sociedade se somaram com a gente e começaram ajudar nas ligações entre o jornalzinho da Igreja, o jornal da cidade e a vida da gente.

Os líderes religiosos diziam que a gente era meio ateu e muito à-toa. Isto porque a gente não falava tanto em Jesus, nem de Deus, ou do céu e muito menos de alma. Só o Feijão que vivia falando “oh Jesuis” e “Aí meu Deus do céu” e a Nóia que um dia inventou de dizer: “a alma da gente é verde como as árvores”. A gente não se preocupava em apontar o dedo para o outro o chamando de pecador. O Paulinho certo dia falou que Jesus era deficiente físico, não tinha o dedo indicador, porque nunca apontou o dedo para alguém dizendo “aquele ali é um pecador que vai para os infernos”. E o mais legal é que ninguém cobrava do outro a participação na Igreja porque sabia que para entrar lá não podia ser um maldito como a gente.

A gente falava da vida, das coisas simples, das dificuldades do dia-a-dia, do pão da terra mais do que o pão do céu. É claro que a gente sonhava, voava alto, projetava um mundo diferente e uma vida melhor para toda a criação divina. A gente dizia: “este não pode ser o mundo que Deus quer”. Se até uma cobra cuida dos seus filhotes quanto mais o Pai do Céu quer o melhor para os seus filhos e filhas. E assim a gente ia vivendo, todo mundo meio errado com aquilo que as religiões diziam que era o certo. Para gente quando nascia alguém, fosse um filhote de árvore, gata ou gente, era natal, ainda que todo o mundo tivesse comemorando a páscoa. Quando morria alguém, fosse quem fosse, ainda que o mundo estivesse celebrando a festa de Cristo Rei, para a gente era Sexta-Feira Santa. Quando tinha bala, doce e pipoca era festa de São Cosme e Damião. Para gente pouco importava o tempo de jejum e abstinência, a gente fazia festa por qualquer motivo que trouxesse felicidade para o novo povo da praça.

A gente não era um povo perfeito, não, de modo algum! Falando assim parece que tudo ia as mil e uma maravilhas, mas a gente tinha muitos problemas. A gente não era superior e nem inferior a ninguém do ponto de vista moral ou religioso. Quando um trocava de casal, ou quando um pegava o cobertor do outro, ou ainda um não repartia a comida, alguém não queria dividir a comida com os animais... a coisa esquentava, mas logo em seguida se resolvia, as vezes demorava, mas no final das contas tudo se ajeitava.

Por vezes, na hora da nossa conversa, havia brigas de pensamento também. O Polaco gostava de dizer que Deus ia resolver tudo, que Jesus estava voltando e que colocaria os “pingos nos i”, faria novos céus e nova terra, viria sobre as nuvens para julgar o mundo com justiça. Já a Maria dizia que não era bem assim, que a gente tinha é que agir, criticar, denunciar, fazer chicote, protestar que nada iria cair do céu pronto. E uns ficavam de um lado, outros de outro, e alguns diziam que era bobagem deles porque as duas coisas já estavam acontecendo, até hoje não sei quem estava certo.

O certo é que era isso mesmo que a gente via: Deus na gente e a gente em Deus. A gente não sabia ao certo o que Deus era, mas sabia o que Ele fazia no meio da gente. A gente mais vivia do que compreendia, e isto é que era importante para a gente. O pessoal procurava (apesar de todas as limitações) mais realizar o que dizia na bíblia do que ficar falando bonito.

Entre a gente até que a coisa funcionava, o brabo era ter que amar os inimigos. Imagina só: amar quem queria expulsar a gente da praça; rezar por quem vivia falando mal da gente; se sentir irmão de quem não queria ver a gente como irmão e irmã da mesma criação divina? Vê se pode uma coisa destas!? Muitos desses que diziam bem alto na procissão “Pai Nosso”, se julgavam filhos e filhas de Deus, liam a bíblia, mas não se sentiam irmãos e irmãs dos outros. Eu acho que no fundo rezavam assim: “Pai Meu”! Não entendo como Cristo não quer que a gente julgue, Deus me perdoe, mas estes não creem que Deus é Pai de uma comunidade de irmãos e irmãs – isso sim é que eu acho que é o maior pecado.

Pois é... esse era um problema sério! A gente gostava das palavras de Cristo, parecia que Ele falava o que a gente queria ouvir, mas lá pelas tantas ele decepcionava a gente. Lembro da Bugra dizendo, “se eu der a outra face daí sim que vou perder todos os dentes”. Mas Ele era nosso amigo, e amigo é assim mesmo, não concorda com tudo o que a gente pensa, faz a gente pensar coisas diferentes, provoca a gente, incomoda a gente e no final a gente entende bem e vê que é o melhor mesmo.

O fato é que a gente foi se unindo, ficando um povo numeroso. Muitos outros se somaram com a gente, a gente foi ficando forte e conseguimos muitas vitórias, e nestas conquistas a gente já via a tal da Terra Prometida. Mas também tivemos muitas derrotas, e nisto a gente via que ainda não estava no Reino de Deus, mas sim no reino do capeta.

Muitos milagres aconteceram: A gente caminhava com as próprias pernas sem pedir favores aos grandes da cidade; Já confiava uns nos outros, confiava tanto que tinha, inclusive, liberdade para discordar do que o outro pensava; A palavra do companheiro de praça era mais importante do que a fala de qualquer político ou doutor; Quando alguém ficava doente todos cuidavam do pobre coitado, fosse eu, fosse a Chicota, fosse quem fosse; Os que andavam como mortos a gente animava e não deixava ninguém ficar para baixo; Não tinha desgraçado pelo mundo que não encontrasse a nossa graça, nosso abraço, nosso prato e nosso copo d’água; as parcerias com grupos populares foram se formando (sindicatos, movimentos e pastorais sociais, camponeses sem terra, educação popular, grupos feministas, grupos que defendiam as culturas oprimidas: sobretudo indígena e afro-descendente, partidos verdadeiramente de esquerda, movimento ecológico, economia solidária, recicladores...); Os demônios da polícia a gente expulsava com muito batuque, cantoria, dança, banho de pipoca e com as mãos das crianças cheias de flores; Ave Maria! nem dá para contar tudo o que a gente fazia.

O senhor deve ter lido nos jornais e visto na TV as reportagens que fizeram sobre a gente. A gente fermentou aquela cidade, fomos até manchete internacional, assim contou para a gente o líder do sindicato dos trabalhadores. O pessoal do tal movimento social disse que a gente estava até na internet. A Feliciana ficou com a boca lá nas orelhas quando disseram que saiu uma declaração dela “esta praça é a nossa terra santa”. Eu disse para o repórter que aquilo que estava ocorrendo ali só podia ser coisa de Deus porque a gente não tinha poder, nem inteligência, nem capacidade para promover algo tão grandioso assim. Grandioso para a gente porque para elite da cidade aquilo tudo era uma vergonha. Disto a gente sabia porque eles não faziam questão de esconder.

Mas é assim mesmo, declaração de rico sempre é apreciada, ao passo que a fala do pobre é sempre desprezada. O Anísio, o louco da cidade, tinha uma fala profética repetitiva que ninguém escutava, ele vivia dizendo “Deus é rico” até que um dia a Margarete perguntou para ele porque ele vivia dizendo aquilo. Anísio respondeu: “porque as igrejas vivem pedindo dinheiro”.

Pois não é que o doido do Anísio se aproximou do povo da praça e descobriu que dízimos, ofertas exteriores, ritos vazios, obras de fachada, uma dúzia de preceitos e outras inutilidades não passam de falsas seguranças! Até o Anísio doido entendeu que é preciso se entregar totalmente a Deus e aos irmãos e irmãs para se tornar justo aos olhos de Deus, e que isto somente os pobres podem fazer! Hoje Anísio assumiu a sua loucura e ajudou a gente a se tornar em loucos e loucas de Deus. Hoje ele vive repetindo “estou louco, louco para te servir, louco para te amar, louco para oferecer a minha vida pelo Reino de Deus”.

Esse Anísio... Mas eu pergunto quem é mais louco? Anísio ou quem se diz cristão, vai na Igreja todo o santo domingo, comunga na mesa de irmãos e irmãs e depois profana a mesa da eucaristia não comungando da vida das vítimas deste sistema de pecado? Se este mundo é normal então queremos ser, lá na praça e no mundo, loucos e loucas. Queremos viver a loucura das bem-aventuranças! Não será loucura maior alguém rezar “venha nós o teu reino” e depois não fazer nada contra a opressão, a miséria, o desespero... que indicam que o Reino de Deus não está sendo antecipado e vivido na história? Como alguém pode se dizer discípulo/a de Jesus e não ser solidário/a com os crucificados e crucificadas? A gente mesmo, lá na praça, pode contar nos dedos os Cirineus que ajudaram a gente a carregar a cruz.

Vou lhe contar, muito sinceramente, a gente juntava tudo quanto era religião, rezava de tudo quanto era maneira, mas uma coisa todos tinham, e isto, acho eu, poderia ajudar os cristãos: A gente tinha fé de pobre. A gente esperava que com certeza, de uma forma ou de outra, o mundo injusto que crucificava a gente não era o mundo que Deus queria. Se os cristãos ao menos aprendessem isso, só isso, acho que isso já faria com que eles compreendessem mais a Jesus e o seguissem melhor. Mas o brabo é que eles ficavam dentro do templo tentando compreender para viver, talvez devessem viver mais junto com a gente lá fora para compreender.

O senhor me desculpe falar tanto, mas é que tenho tantas histórias que nem todos os livros do mundo poderiam suportar. Hoje, não sei o que deu, mas me tornei uma pessoa muito inspirada, falei tanto que até parecia alguém da tal da teologia falando, nem me atrapalhei tanto. Nem a Chicota está acostumada a me ouvir tanto assim, não é Chicota!? Acho que até dormiu, nem abanou o rabinho. Mas como ia lhe dizendo, sou uma pessoa muito agradecida pelo senhor me escutar tanto. Dificilmente a gente encontra alguém tão disposto assim em ouvir alguém como eu. Já falei demais e gostaria de deixar o senhor falar um pouco também.

- Eu te conheço, aproxime-se, venha irmã pequenina abençoada pelo Pai! Receba o Reino pleno como herança que o Pai Nosso preparou para o seu povo desde a criação do mundo! Adentre-se no Banquete Eterno do qual já aperitivaste, a Festa Eterna dos filhos e filhas de Deus que jamais acaba! Venha de pressa, tu e Chicota, continuar e plenificar a experiência da praça! Venha sem medo interceder por aqueles e aquelas que lá ficaram e por tantos outros e outras de tantas praças, acampamentos, favelas, ruas, pontes, canais e porões do mundo.

 

Eliézer Oliveira

Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

 


 



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