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Conversa entre RiosAna TERRA LEME
 
– Vamos ver se dessa vez você me compreende... Você é filha das águas. O despertador toca. Acordo sobressaltada. O dia promete. Olho a lista de ontem... Quantas contas tenho que pagar! Água, luz telefone... que mais? Celular! O plano de pagamento é assim: um mês paga outro não. Adivinha qual é esse? Corro para a cozinha. Minha irmã já saiu mais cedo do que eu. Aquele trabalho dela tem horário de fábrica. Deixou café na garrafa térmica. Vou lavando louça enquanto termino de acordar... Como era aquela música? Sonhei com ela outro dia... Não me lembro. Enxáguo o último copo. Lavo minha xícara, esquento o leite. Ah! Cheiro de café saindo da garrafa. Agora sim, o dia começou. Bebo e sinto esquentar a garganta meio reclamona do trabalho constante em ar condicionado. Olho o jornal em cima da mesa. Hoje vai ser dia de baixa umidade. Não escapa nenhum lugar desse planalto central. – Só aqui para ter baixa umidade em março – penso em silêncio. Ligo o computador enquanto o café com leite esfria. Toda manhã é assim. Fico numa ansiedade só prá saber se ele já escreveu. Ué? Nada? Dele não. Ainda. Jogo fora mensagem de propaganda, desisto de participar da nona corrente que me convidam nessa semana e então, chega uma mensagem. Não, não é dele. É da madrinha? Abro a mensagem:
Hoje aniversario 30 anos do golpe. Veja jornal argentino. Vamos compreendendo esses marços sombrios em nossas vidas. Beijos, M.
Ela sempre me escreve em português, se esforça para isso. Fico com a xícara na mão. Ainda está quente por fora. Abro o site do jornal argentino. Notícias das terras portenhas. Mais uma noite em que Buenos Aires não vai dormir. Só que dessa vez a cidade vai estar em vigília. O povo vai para a rua. As mães da Praça de Maio, as avós, os filhos, os netos, todos ali. Dessa vez, o próprio presidente está do mesmo lado. 30 mil desaparecidos. Mataram a juventude do país naqueles tempos. Kirchner inaugura placa: «Nunca más al terrorismo de Estado». 30 mil desaparecidos. Minha xícara já está fria. Ponho para esquentar outra vez. Lá da cozinha escuto: nova mensagem. Agora é ele! Corro para o computador, abro a mensagem.
Hola mi amor, cómo estás? No sé todavía cómo va a ser hoy. La gente hoy no trabaja, están todos en la calle. Dejé todo organizado pero no sé si voy conseguir hacer la mudanza. Vamos a ver como sale... Sólo te digo uma cosa: nuestro pequeño departamento es demasiado grande sin vos. Te quiero F.
Ah! Suspiro. O dia tornou a começar. Lembro do beijo no pescoço e vem o frio na barriga. Mal posso esperar para entrar na casa, ou melhor no apartamento. É quarto e sala. Ele mesmo encontrou por lá. Ainda não me acostumei: vamos mesmo, viver juntos. Vi as fotos pela Internet. É pequenininho. Entraremos todos? Nós, nossas trouxas e nossas escovas de dentes? Viver em outro país... Mistura medo e alegria. A verdade é que me sinto meio noiva. Lembro de quando estive lá pela primeira vez. Foi para o casamento da madrinha. Vi que o Iraque tinha sido invadido. Estava na primeira página de todos os jornais. Ver notícia de guerra longe da terra da gente, parece que dá mais medo. Naquele tempo, eu saía com um judeu. Israelense. Vai entender o que eu sentia... Já passou um par de anos. Ainda bem. Outros rumos. O telefone toca. Atendo com voz de quem ainda não falou com ninguém. Não é uma pessoa que fala. É uma máquina. Odeio gravação para vender coisas. Desligo o telefone sem pestanejar. Espero dois minutos. Só por curiosidade tiro o telefone do gancho outra vez. A dona da gravação continua falando. Segura minha linha por sete minutos... e se eu tivesse que fazer uma ligação urgente? Desistem de mim. Devem ter tido acesso a meu extrato bancário. Como eu faço para economizar nesse tempo? Falta pouco para eu ir para a Argentina. Quantas semanas? Busco um calendário. Vou virando as páginas da agenda... Menos de seis semanas contando a partir de hoje, 24 de março. Há três anos atrás, eu estava em Buenos Aires. Há três anos atrás, eu tomei o metrô e fui para a Plaza de Mayo. Já era de noitinha. A praça estava cheia. As pessoas tinham faixas e tambores. Fazia frio. Eu tinha um xale vermelho feito por artesãs, lá de Santiago del Estero. Pus na cabeça para proteger a garganta e os ouvidos. Fiquei com uma cara entre palestina e andaluza. Sentia que as pessoas me olhavam, pensando assim: – Bom, deixa. Fazer o quê? É brasileira. Homens e mulheres começaram a se arrumar para sair em marcha. Seguravam uma faixa tão larga e tão comprida que ia cobrindo toda a rua. Duas filas foram se organizando e todo mundo foi segurando na beirada do pano. Levantaram e foram andando. Eu sentia um ímã me puxando e me aproximei para ver o que era. Tinha fotos pregadas em todo o tecido. Fotos dos desaparecidos políticos. Lembrei de meu tio e das águas do Araguaia. Respirei fundo. Ele era irmão da minha mãe. Tinha 22 anos quando foi morto. Um moço percebeu alguma coisa do que eu estava sentindo e me ofereceu: – Querés ayudar? – Si – lhe respondo. Fiquei olhando para o seu rosto enquanto estendia a mão para segurar o tecido. Quando paramos de nos olhar com um sorriso, olhei para o lugar onde havia segurado. Minha mão estava entre duas fotos. Um mulher assassinada em seis de dezembro e um homem assassinado em oito de dezembro. Meu aniversário é sete de dezembro. Se eu conto ninguém acredita. Quantos metros tinha aquele tecido? Não sei. Só sei que tomava a rua. Fui caminhando junto com eles. Paramos na frente dos Tribunais. As pessoas foram descendo o tecido, estendendo na rua. Tinha um cordão policial na escadaria em frente a porta principal. Estavam todos de negro, cacetete em punho. Tive medo. Já não parava mais de pensar em meu tio. As pessoas começaram a gritar: – Assessinos, assessinos, assessinos! Os policiais seguiam imóveis, petrificados. O que estariam pensando? Quem diria? Era um 24 de março como hoje. Dia do aniversário de minha mãe. Sinto cheiro de queimado. O leite com café derramou. Já evaporou a terça parte. Odeio limpar casquinha de leite no fogão. Reclamo, resmungo. Não tem jeito: limpo tudo. Tenho que me apressar. Daqui a pouco tenho que ir ajudar a preparar a festa de aniversário. Já escuto minha irmã me ligando: – « ‘Tá atrasada!» – e eu respondendo: – « ‘Já vou, Lídia, já vou». Volto ao computador. A vigília segue. Hebe Bonafini vai falar à noite. O maestro do Teatro Colón diz que o que se sabe fazer por ali é música, então, hoje é dia de música, música em nome da ressurreição. Trava minha garganta. Lembro da semana passada. Sete dias atrás exatamente. Meu dia tinha começado péssimo. Depois do café, tocou o telefone. Era o segundo marido da minha mãe. Não, não é o meu pai biológico. Em determinado momento da minha vida, o Jonas ajudou a me criar. Odeio brigar com ele. Mas às vezes não tem como. Já passei dos vinte e cinco, mas tem coisa que brigo desde os quinze. Mudou pouco. Isso não diz muito bem de mim. Ele é fotógrafo. Metido em documentários. Viaja muito. Me ligou da Bielorússia, uma vez. Era mesmo a Bielorrússia ou eu é que era muito pequena? Fico em dúvida. Foi ele que tirou as melhores fotos de quando eu era pequena. Compreendia meus olhos e alguma coisa da minha alegria quando eu entrava na água. Por isso me levava para ver meu padrinho nas férias. Incomunicações. Nada presta quando ela está por perto. Aquele dia era 17 de março. Eu já sabia. Tinha olhado na agenda dias antes. Chovia muito naquela manhã. Realmente, fazia juz ao mês da despedida das chuvas. Eu sentia que tudo era muito mais lento e era muito mais difícil fazer qualquer coisa mais ou menos precisa. Era um desses dias pastosos. Custei a levantar e nem mesmo o cheiro do café com o pãozinho esquentado na panela parecia convidativo. Não falei com ninguém até minha briga no telefone. Comi pouco, arrumei a casa e perto da hora de ir para o que será meu emprego até o fim do mês que vêm, decidi: – Hoje não vou, não. Estava sozinha. Senti falta da minha irmã nesse dia. Quis falar com minha mãe. Liguei para minha chefe temporária e lhe disse: – Hoje é aniversário da morte do meu tio. Vai ter uma celebração que é uma espécie de retiro... desculpe avisar em cima da hora... Ela me escutou atenta. Nem sabia que alguma vez eu tive um tio: – Preocupa não – ela me responde – Outra hora você repõe... Engraçado, nesse dia resolvi rezar. Não sou muito dada a essas coisas, mas nesse dia sentia que precisava do rosário todo. A cola do catecismo me ajudou a não me perder. Rezei. Fazia 33 anos da morte dele. Um mártir na família. Quantas vezes eu senti a mesma pergunta: – E eu faço o quê com isso? Sentia uma culpa de pensar assim... Imediatamente lembrei do meu padrinho. Lembrei das coisas que ele me dizia enquanto remava: sangue do mártir é semente de vida... Segui minha com a minha oração. Ia pedindo para ir compreendendo aquelas palavras, para ir tornando real na minha vida, na minha vida pequenina. Capaz de eu levar o tempo dela e mais um tanto para compreender isso...Terminei o rosário. Resolvi ligar para ele. Quanto tempo fazia desde a última vez? Meses talvez... Liguei nervosa. Disquei a primeira vez, erro. Tentei uma, duas, três vezes até que consegui acertar. Foi Dona Graça quem atendeu. Saudade dela... Não disse meu nome, só perguntei: – Devaney ‘taí? – ‘Tá não. Só ‘tá Seu Lucas e eu. Peraí. – Não! Espera... Tarde demais. Já estava ela entregando o telefone ao pescador. – Tua afilhada. Como é que ela sempre sabe quando eu ligo? – Ora, ora, mas que surpresa! Como vai a vida? – escutei do outro lado. – Vai bem... quer dizer...estou trabalhando... – a língua enrolava na minha boca, não me obedecia. Fiz de tudo, gaguejei, dei volta até que falei – Então, é que eu vou casar! – Ora, ora ... – Ele é argentino. – Vai aprender a dançar tango? – Na verdade, já estou aprendendo... – sorri. A ligação sempre é horrível. Faz um barulho danado. Mas é só ouvir voz dele do outro lado e parece que eu estou na canoa, aprendendo a pescar, a ouvindo os bichos, o remo deslizando na água. – Quer saber? Espera aí que teu padrinho precisa é de um banquinho para sentar. Esperei um pouco. Ouvi ele sentando e soube na hora – te prepara para ouvir. –Você inventa de sumir e esquece que tem gente que vive por aqui. Pelo menos quando liga traz notícia boa... Ô, minha filha, eu estava com saudades. – Eu também, padrinho, mas eu não sabia o que fazer. Tanta coisa acontecendo. Minha irmã tem me ajudado tanto. Mas eu, o senhor sabe, aquela indecisão. Vou prá lá, não vou prá lá... eu não sabia o que dizer. Ia ligar prá contar o quê? – Podia ter ligado para dizer justamente isso. Vocês aí, tem uma mania de achar que só tem que falar com as pessoas quando já está tudo pronto. Desse jeito ninguém pode ajudar em nada. Que coisa! Vamos ver se dessa vez você me compreende! Pronto! Quantas vezes eu já ouvi isso? Quantas vezes eu ainda vou ouvir? – devia me perguntar. É sempre assim. Ele começa firme, de um jeito que até assusta, mas depois, vai me explicando as coisas com uma paciência, com uma ternura que é tão bom de escutar. Lembro agora do meu sonho. Eram as mãos dele que tocavam meu rosto: – Você é filha das águas – ele me dizia. Quanta coisa aprendi com ele. Viveu no Araguaia a vida inteira. Escondeu meu tio quando ele estava clandestino. Depois não teve mais jeito. Segundo seu Lucas, ele teimou de ir para a cidade e foi aí que o descobriram. Ainda vou saber essa história até o fim. Demorou dez anos para encontrarem o corpo numa vala comum. No sepultamento, depois de todos os trâmites do traslado, Seu Lucas estava lá. Talvez tenha sido uma das únicas vezes que ele saiu do Araguaia. Eu também estava. Fiquei no colo dele durante toda a cerimônia. Minha mãe sempre gostou dele. Foi depois desse dia que eu comecei a passar férias no Araguaia. Era o Jonas que me levava. Falava pouco com Seu Lucas, mas percebia o quanto eu gostava de estar ali. Acho que ele o respeitava. – Então, ele é argentino? – continuou seu Lucas depois de passar meu sabão merecido. Ficou um tempo em silêncio até que continuou – Rio não conhece fronteira e é desse jeito que conhece a diferença cada um. Mistérios. Que Deus te abençoe minha filha. Meus olhos se encheram de água. Ô saudade que estava do meu padrinho. Como me sinto perto dele, toda vez que nos falamos. A palavra aproxima as pessoas. – Penso sempre no senhor padrinho, ainda mais quando levanto de manhãzinha e num dia como hoje... – Pois é – ele emendou – faz 33 anos. Eu e Dona Graça fomos à capela rezar um pouco. Você sabe que teu tio foi um filho para mim. Rezamos. Senti uma saudade danada, mas eu sempre digo e repito: a morte do Cristo mata a Morte. Não temos o que temer com o Mestre por perto. Suspirei e suspiro cada vez que eu me lembro do timbre da voz dele dizendo isso. – Bom, e você vai poder remar no rio da Prata? – Comecei a rir e ele continuou – Como está sua irmã? – O senhor sabe mais dela do que eu... – Ah! Isso é verdade. Que eu posso fazer se ela me telefona mais do que você... E sua mãe? – Está bem. O namorado dela é boa gente. Descendente de árabe. Ele tem um restaurante. Acho que ela está feliz. Está trabalhando muito naquela ONG. – Nunca entendi isso direito. As coisas mudaram muito minha filha. Dona Graça tentou me explicar outro dia, mas não teve jeito, não... – Faz mal, não, Seu Lucas. O senhor sabe das coisas que importam de verdade. – Ligue para tua mãe no dia de hoje. Eu vou falar com ela mais tarde. Nos despedimos com afeto. Lembrei disso de uma vez só. Fecho agora, os olhos e lembro de mim já grande dentro do Araguaia, sozinha, em silêncio, sentindo a correnteza na pele. De repente, buzina de carro. Ai não, me atrasei de novo. Será possível que ela já chegou? Toca meu celular. Atendo: – ‘Tá atrasada! – Já vou Lídia, já vou. Deixa só eu trocar de roupa e desligar o computador. Desço a escada correndo. Vamos para a casa da mãe para ajudar na preparação da festa. Parece que vai muita gente. Meu pai biológico não, mas o Jonas vai estar lá com a namorada. Vai entender... quase todos os ex-maridos reunidos. Tomara que Seu Lucas ligue hoje também, para cumprimentá-la pelo aniversário. Dona Graça sempre lembra. Vai ser uma festa movimentada. Chega a hora da festa. Minha mãe está feliz. Al-Hamed é muito dedicado, atencioso com ela. Comemos, bebemos, cantamos, dançamos. O telefone toca: é minha madrinha. Ligação internacional. – Corre mãe, que o telefone é caro. Ela volta contente. Dá as notícias de lá, escutamos todos, atentos. O telefone toca outra vez: é Seu Lucas. Minha mãe vai para o quarto atender. Volta com lágrima nos olhos. Ela realmente está feliz. Ficamos um tempo abraçadas nós três, ela, Lídia e eu. – Amanhã quero as duas aqui para o almoço. – Trabalho as duas da tarde mãe. – E eu às quinze pras duas – responde Lídia. – Não faz mal. Vou fazer almoço cedo, amanhã. Essa é uma das grandes virtudes da minha mãe: cozinhar. Parece que agora está aprendendo a receita original do tabule com o Al-Hamed. Cantamos parabéns: 49 anos. Al-Hamed lhe dá um vaso de orquídeas: – Para mulheres de beleza rara – ele diz. Nos despedimos. Lídia e eu voltamos para casa. Ela está exausta. Andou brigando com o ex-marido. Antes de dormir ainda quer pendurar a roupa que ficou dentro da máquina de lavar. –Vai deitar Lídia. Deixa que eu faço isso. Não costuma aceitar assim, facilmente, mas dessa vez aceita: me beija o rosto e se atira exausta na cama. Acordou bem mais cedo do que eu. Trabalhou que só no dia de hoje. Penduro a roupa e antes de dormir. A morte do Cristo mata a morte. Ah! Seu Lucas... Que alegria!Volto ao computador para ver as mensagens. Tem outra.
Hola mi amor, Llevé todas mis cosas para el pequeño departamento. Mis amigos me ayudaran. La verdad és que está quedando lindo. Estuve en la Plaza de Mayo. A quién encontré? A tu madrina, obviamente. Después te cuento todo, ahora estoy exhausto. Mandale saludos a tu mamá. Con amor. F.
Suspiro. À benção, Seu Lucas! Quem foi que disse que a morte é a última palavra? E para aprender da Vida, Dona Graça me contou uma vez: – Só com amor minha filha, e esse pessoal que diz por aí que conhece de amor divino sem ter vivido a vida até o fim, não acredito, não. À bênção, Dona Graça. Vou atrás de aprender desse amor lá na Argentina. Quem sabe quando eu tiver a idade da senhora, vou poder contar história para quem tem a minha, hoje... À benção, minha madrinha, que lá do Rio da Prata vem cuidando de mim e de minha mãe. Vou dormir revigorada, mas antes... quem sabe ele não está conectado?
  Ana Terra Leme Brasilia, Brasil
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