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Unicidade de Jesus revisada

Paul F. KNITTER


 

Este texto es el capítulo cuarto del libro Jesus e os Outros Nomes de Paul F. Knitter, publicado em 2010 por Nhanduti Editora (www.nhanduti.com) que autoriza su publicación a la RELaT de los Servicios Koinonía.

 

 

Uma cristologia correlacional e globalmente responsável

Embora nunca sejamos capazes de esclarecer nítida e conclusivamente o que quer dizer “a essência do cristianismo”, nós sabemos, seja o que for, que isso tem sua base e foco em Jesus o Cristo. Portanto, se quisermos colocar o adjetivo “cristão” diante do que estávamos chamando de um diálogo correlacional, globalmente responsável das religiões, teremos que demonstrar como semelhante diálogo, e atrás dele a teologia, são consistentes com e sustentados pelo papel que Jesus o Cristo desempenhou e deve desempenhar na comunidade cristã.

Aqui há uma dificuldade. Assim como ouvimos no capítulo anterior, há um grande grupo de teólogos e de cristãos comuns que considera um diálogo correlacional ou pluralista como um caminho que leva para fora do compromisso com Jesus e da fidelidade com o testemunho cristão. Para eles, qualquer esforço, formulado explicitamente ou disfarçado habilmente, de situar Jesus no mesmo nível que outras figuras religiosas ou salvadores, é barrado pela parede daquilo que foi claramente afirmado no Novo Testamento e firmemente mantido ao longo da história das Igrejas. Colocar Jesus numa comunidade de iguais com outros reveladores significa roubar a força do compromisso de discípulo de Cristo e diluir a coragem da denúncia profética cristã do mal. Poderia contribuir para uma comunidade feliz de religiões, mas à custa da identidade cristã

Contudo, a dificuldade tem dois lados. Se os apelos por um diálogo correlacional parecem ameaçar as visões cristãs tradicionais sobre Jesus, então muitas afirmações cristãs sobre Jesus parecem colocar barreiras para um fluxo livre e total do diálogo. Os teólogos que insistem no que foi chamado de uma cristologia “inclusivista” – quer dizer, numa visão sobre Jesus como constitutiva de ou normativa para toda revelação e experiência de Deus – argumentam que semelhante compreensão de Jesus, como a manifestação final, completa e insuperável de Deus, não impede um diálogo verdadeiro. No entanto, pelo que eu os tenho ouvido, eles não parecem explicar como isso pode acontecer. Pois, como posso realmente ouvir suas afirmações verdadeiras, como posso estar sempre pronto a admitir que estou errado e preciso de correção, se eu acredito que Deus me tem dado (por meio de nenhum mérito que seja meu) a revelação conclusiva, insuperável, auto-suficiente da verdade divina. Uma coisa é entrar no diálogo com afirmações sólidas da verdade; outra coisa é colocar na mesa do diálogo afirmações da verdade que estão carimbadas, com o selo divino de aprovação, como finais e insuperáveis. No primeiro caso, a minha posição firme está aberta a ser corrigida e complementada (embora eu permaneça firme, estou pronto para fazer modificações se for necessário); no segundo caso, mudar minha posição é violar a revelação que Deus me deu. Então, parece-me que os anúncios cristãos tradicionais de Jesus como final, total e insuperável devem ser, no mínimo, uma ameaça ao diálogo.

Para os cristãos, um diálogo ameaçado é (ou deveria ser) um problema exatamente tão sério quanto uma identidade cristã ameaçada. Como sustentamos no capítulo II, um diálogo autêntico entre culturas e religiões – no qual todos os parceiros estão exatamente tão prontos para aprender quanto para ensinar, exatamente tão prontos para reconhecer a verdade de outros quanto para falar sua própria verdade – é percebido hoje como um imperativo moral. Qualquer coisa que torna problemático semelhante diálogo é um problema em si mesmo. Portanto, um teólogo-crente cristão não pode primeiro elaborar uma cristologia ou visão sobre Jesus e depois pensar como ela se relaciona com o diálogo. Uma preocupação pelas necessidades do diálogo com outras comunidades religiosas não pode ser simplesmente um resultado ou uma questão especial, uma vez que a cristologia já esteja elaborada. Antes, a realidade de outras religiões e a necessidade do diálogo devem fazer parte das pré-econdições para compreender quem é Jesus. “O pluralismo religioso é parte do ponto de partida de uma cristologia que começa com a vida e a experiência cristã no nosso mundo de hoje... (pluralismo religioso) forma um contexto a priori para o pensamento cristológico” (Haight 1992, 261).

Há também alertas contínuos de cristãos em lugares anteriormente chamados de missão, dizendo que, apesar de os teólogos europeu-americanos declararem o contrário, a linguagem comum sobre Jesus como o salvador único e universal e como pedra de toque de toda a verdade tem confirmado, se não concebido, políticas do imperialismo cultural e religioso. Samuel Rayan da Índia, ao responder à compreensão de Jesus pelo Vaticano como um salvador absoluto, afirma uma questão delicada, mas incisiva: “Nós (isto é, os indianos) perguntamos, por um lado, pela ligação secreta entre o conceito ocidental da unicidade de Cristo e a autoridade, e, por outro, pelo projeto ocidental de dominação do mundo” (Rayan 1990, 133). Portanto, Raimon Panikkar espera que, do mesmo modo como teólogos falam de antigas noções de YHWH como uma “divindade tribal” mais tarde purificada pelos profetas judeus, assim também teólogos no “terceiro milênio cristão” reconhecerão que muitas das imagens de Cristo, feitas como uma “cristologia tribal”, podem ser purificadas por uma cristologia revisada que “permite que os cristãos percebam a obra de Cristo em qualquer lugar sem alegar terem um conhecimento melhor ou um monopólio desse Mistério que lhes foi revelado de uma forma exclusiva” (Panikkar 1990b, 122).[1]

Neste capítulo ofereço, de uma forma totalmente experimental, algumas propostas para semelhante cristologia revisada, uma cristologia correlacional, globalmente responsável, que tenta remediar algumas das desgraças do problema de dois lados que acabamos de descrever: uma compreensão de Jesus e de sua presença permanente como o Cristo nas Igrejas cristãs que é, por um lado, fiel ao testemunho original e conducente ao discipulado cristão e, por outro, alimenta e orienta um diálogo com outros crentes que é autenticamente correlacional e libertador. Nesta tentativa,quero escutar as vozes dos críticos resumidas no capítulo III; quero corresponder às suas preocupações e não apenas responder às suas objeções. Para fazer isso, espero alcançar, ou dar alguns passos para o melhor equilíbrio, descrito no capítulo 2, entre a particularidade de Jesus e a universalidade que se tornou clara nele. O assunto deste capítulo é a questão complicada da unicidade de Jesus. Confio que fique claro minha intenção que não é negar essa unicidade, mas revisá-la e reafirmá-la.

A proposta deste capítulo de uma revisão correlacional, global da cristologia tem dois componentes: em primeiro lugar explorarei apenas o que significa ser fiel ao testemunho do Novo Testamento sobre Jesus e à recepção do testemunho nas Igrejas ao longo dos séculos. Em segundo lugar farei uma proposta das qualidades ou dos atributos formais de uma compreensão revisada da unicidade de Jesus – o que os cristãos querem dizer e o que não querem dizer quando proclamam que Jesus é único. Espero que esta parte gere a energia para a cristologia correlacional, uma cristologia que permite aos cristãos serem tão comprometidos com Jesus quanto estão abertos para outras religiões. No capítulo que segue, exploraremos apenas o que é que faz Jesus único – o conteúdo essencial da sua unicidade.

 

O significado da fidelidade de Jesus, o Cristo

Ao levantar a questão de como alguém permanece fiel ao testemunho original cristão sobre Jesus, de fato, estamos perguntando pela natureza da fé cristã e da teologia cristã. Suponho que a maioria dos cristãos concordaria que, ao falar sobre sua vida de fé, seria mais exato dizer que alguém vive sua fé do que alguém tem sua fé.

Poderíamos dizer o mesmo sobre ser “fiel ao evangelho” – fidelidade não é algo que é possuído, mas antes, algo que é vivido e praticado no dia a dia. No entanto, se isto é verdade, se a fidelidade e a fé são assuntos de ser em vez de ter, de viver em vez de afirmar, então, acho consequente que o fundamento ou a fonte para esta fé fiel não pode ser apenas o evangelho ou a Bíblia. A Bíblia sozinha seria suficiente se a fé fosse um assunto de ter ou de afirmar; tudo o que precisaríamos fazer é compreender o que isso significa e, depois, preservar essa compreensão. Mas se a fé é principalmente um assunto de viver e de agir, então temos que relacionar ou aplicar o que ouvimos na Bíblia ao que acontece em nossas vidas, a situações concretas assim como mudam de um dia para o outro na nossa história.

 

A Bíblia e o jornal diário

Assim, há dois momentos ou duas fontes das quais temos que viver a nossa fé e desenvolver a nossa fidelidade: a experiência que encontramos e temos nas escrituras, e a experiência que temos no nosso mundo atual e sempre em mudança. Ou, como Karl Barth costumava dizer, para sermos bons cristãos devemos ler tanto a Bíblia quanto o jornal de hoje. Precisamos de ambos para praticar a fé cristã: sem a Bíblia, sem as afirmações cristãs, eles não podem compreender o que está sendo relatado em jornais. No entanto, o contrário é também verdade – sem o jornal diário não podemos viver de verdade e, portanto, compreender a mensagem da Bíblia.

Numa linguagem mais seca e acadêmica de teólogos contemporâneos podemos dizer que as duas fontes para a teologia cristã são: a compreensão pessoal, condicionada historicamente, do acontecimento cristão (escritura e tradição) e a compreensão pessoal de si mesmo e do mundo onde vive uma determinada pessoa. Assim, como já foi afirmado no início do capítulo II, estas duas compreensões condicionam e alimentam uma à outra (Tracy 1975, cap. II; Ogden 1972). Assim, uma fé-vida cristã fiel pode ser descrita como o resultado de uma conversa de esclarecimento mútuo e de crítica mútua entre o testemunho cristão e a experiência pessoal no mundo (cf. Hill etc. 1990, 251-61). Cada lado esclarece e critica o outro.

Neste momento, muitos cristãos objetariam ou exigiriam uma clareza maior. Parece que semelhante compreensão da fidelidade à tradição e da teologia coloca ambas as fontes – a Bíblia e a experiência humana – no mesmo nível. Isso expõe pessoas ao risco de impor uma própria experiência de Deus e uma própria compreensão da Bíblia de alguém, ou de sujeitar a Palavra de Deus a palavras e pensamentos humanos. Semelhante risco está sempre presente. Porém, ele é ao menos reconhecido e confrontado na medida em que afirmo fortemente que, tanto quanto a Palavra de Deus pode ser “criticada” para ser ouvida dentro das palavras humanas, totalmente limitadas e, às vezes, anuviadas, em que está escrita, tanto quanto a Palavra de Deus pode ser esclarecida, então, ela pode falar aos nossos problemas atuais (dos quais muitos não existiam em tempos bíblicos). Consequentemente, uma vez que essa Palavra esteja esclarecida e criticada, nós esperamos também que ela seja um poder que também esclarecerá e criticará os nossos caminhos completamente egoístas e terríveis de fazer e perceber coisas. A Palavra de Deus será uma força que não apenas revela a beleza nobre do que nós humanos somos, mas desnudará a mesquinharia e a crueldade do coração humano. A mensagem de Deus nos profetas e em Jesus é tanto um anúncio como uma denúncia.

Contudo, mesmo quando a Palavra de Deus nos vira de pernas para o ar ou nos coloca na direção contrária ao caminho que estávamos caminhando, mesmo quando a Palavra de Deus “fere” – nós sabemos que é verdade, porque a nossa experiência humana nos informa que este desconforto é para o nosso próprio bem. Portanto, quando os cristãos evangélicos insistem em que a Bíblia é a sua Palavra de autoridade, em que Jesus é o seu salvador único, parece-me que fazem essas afirmações na base de uma autorização que recebidas através da sua experiência. Jesus não seria o seu salvador se eles não descobrissem que ele os estava salvando! Assim, David Kelsey não nos diz nada de revolucionário ou bizarro quando afirma que a autoridade das escrituras não consiste em nenhum tipo da atribuição divina extrínseca (Deus declarando a Bíblia ser a verdade), ou por causa de qualquer conteúdo cognitivo inerente. Antes, a Bíblia tem autoridade por causa do que continua fazendo para as pessoas; continua transformando suas vidas e a vida da comunidade (Kelsey 1985; McFague 1987, 43-44).[2] Portanto, somos fiéis ao testemunho bíblico quando experimentamos e afirmamos seu poder transformador em nossas vidas e nossas sociedades.

 

Crença correta (ortodoxia) tem raiz em ação correta (ortopraxia)

Tudo isso significa que a fidelidade à tradição cristã, especialmente a “escrituras normativas”, é principalmente uma questão de ação correta ou ortopraxia e não apenas de palavras corretas ou ortodoxia. Repare que eu disse “não apenas” porque palavras, doutrinas e ideias corretas são essenciais. Elas são essenciais à medida que, e somente à medida que promoverem e resultarem da ação correta. No entanto, elas não são principais. Poderíamos dizer que os cristãos acreditam na Trindade não apenas por ser a verdade da forma de como é Deus, mas antes, por ser verdade de como Deus age; ou melhor, Deus é dessa forma porque Deus age dessa forma – o ser de Deus é o fazer de Deus.[3] Professamos a verdade da Trindade não apenas para anunciar a verdade de como é Deus, mas para agir da mesma forma que Deus age: em relações contínuas entre saber e amar.

 Quero repetir que fazer essas asserções sobre a primazia de ortopraxia sobre ortodoxia não é nada novo para as comunidades cristãs.

Desde os primeiros séculos havia um dito teológico Lex orandi est lex credendi, “A norma da oração é a norma da fé”. Em outras palavras, os cristãos não organizaram ou afirmaram primeiro suas crenças nitidamente para depois começarem a orar em torno delas ou a celebrá-las. Credos não precedem a devoção. Antes, encontram sua verdadeira forma e poder em devoção ou em espiritualidade. Enquanto crenças continuam alimentando as chamas de devoção, de compromisso e do sentido da Presença Divina, podemos estar bastante certos que essas crenças são ortodoxas.

Contudo, a regra de oração (lex orandi) é, de certa forma, incompleta, até perigosa, se não inclui a “regra de seguimento” (latinistas diriam lex sequendi). De fato, de acordo com Jesus, parece que a necessidade de segui-lo tem uma prioridade para orar ou louvá-lo. “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21-23). E, de acordo com João, quando os potenciais discípulos de Jesus queriam saber mais sobre ele – onde vivia e quem era – ele respondeu simplesmente: “Vinde e vede” (Jo 1,35-51). É no seguimento e na imitação de Jesus que os cristãos chegam a conhecê-lo e acreditar nele corretamente. Assim como Jon Sobrino formula: “A fé em Cristo é percebida e atualizada mais como uma invocação a Cristo do que como uma simples profissão de fé em Cristo. O lugar da profissão poderia ser orar, o lugar da invocação é praticar” (Sobrino 1987, 59). Portanto, a pedra de toque, não apenas para a crença correta, mas também para a oração correta, é se essas crenças e profissões estão fluindo para o e do seguimento a Jesus – o fazer como ele fez.

Reconhecer Jesus como o nosso Senhor e Salvador é significativo somente quando tratamos de viver como ele viveu e de organizar a nossa vida segundo os valores dele Não precisamos teorizar sobre Jesus, precisamos “re-produzi-lo” em nosso tempo e em nossas circunstâncias... de modo que a nossa busca, assim como a busca dele, é principalmente uma busca por ortopraxia (prática verdadeira) antes do que ortodoxia (doutrina verdadeira). Apenas a prática verdadeira da fé pode verificar no que acreditamos (Nolan 1978, 139-140).

Dizendo mais simples: “A prova de um mapa (sua ortodoxia) é se, ao usá-lo, você consegue viajar bem (sua ortopraxia)” (Charles Taylor in Placher 1989, 129).

Quero enfatizar uma vez mais que, ao insistir na primazia da ortopraxia sobre a ortodoxia, de nenhuma maneira desejo reduzir nem um nem outro, nem minimizar a necessidade da ortodoxia. Assim que a comunidade de seguidores de Jesus (ou qualquer grupo religioso) começa a conversar, entre si ou com o mundo mais amplo, sobre o que estão fazendo e por quê, é necessário formular afirmações, posturas e crenças. No entanto, a minha conclusão é que essas formulações – especialmente ao tratar de esclarecer crenças tradicionais ou novas crenças de moda sobre a pessoa, obra ou unicidade de Jesus – devem surgir de uma experiência de salvação de Jesus e de compromisso com ele e devem alimentá-la (devoção e oração), e de um seguimento firme dele no mundo (discipulado e prática). Se os seguidores de Jesus não fazem isso, então são hereges; se o fazem, merecem a nossa séria consideração e até mesmo nossa aceitação. Em minhas propostas de uma compreensão correlacional da unicidade de Jesus, tratarei de seguir essas regras em prol da fidelidade.

 

A linguagem do Novo Testamento sobre Jesus

Estas considerações acerca da primazia da práxis – ou devocional ou ética – sobre formulações de credo podem nos ajudar a determinar como podemos compreender e ser fiéis a todas as coisas maravilhosas que os autores e os editores do Novo Testamento dizem sobre Jesus, a linguagem que os autores e os editores do Novo Testamento usam em suas cristologias diferentes Esta linguagem pode ser não apenas inspiradora e desafiante, mas também decisiva e, na idade da sensibilidade interreligiosa, inquietante. Estou pensando especialmente em títulos dados a Jesus tais como Filho de Deus, Salvador, Palavra de Deus, que parecem colocá-lo numa categoria separada de e superior a todos os outros fundadores e líderes religiosos. Falando de modo mais incisivo, estou pensando em adjetivos e advérbios aplicados a Jesus e a sua mensagem que parece excluir todas as outras, tais como:

- “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27 – proveniente da Fonte Q).

- “Existe um Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos” (1Cor 8,6).

- Ele é o Filho “unigênito” (Jo 1,14).

- “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único que está voltado para o seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1,18).

- Há “um só mediador entre Deus e a humanidade, Cristo Jesus” (1Tm 2,5).

- “Uma vez por todas” (ephapax) (Hb 9,12).

- “Não há outro Nome pelo qual podemos ser salvos” (At 4,12).

Se olharmos para esta linguagem somente como afirmações de credo ou ortodoxas e esquecemos que essas confissões de fé (lex credendi) cresceram de e pretendiam alimentar a prática de fé em devoção (lex orandi) e discipulado (lex sequendi), corremos o perigo tanto de compreendê-la mal como de usá-la impropriamente.

Seguindo as observações da estudiosa Krister Stendhal sobre o Novo Testamento, tratei de demonstrar, em outro escrito, que se relacionarmos a linguagem sobre “um e único” com suas raízes na prática de devoção no cristianismo antigo, podemos descrevê-la como “linguagem de amor” (Knitter 1985, 184-186). Esta cascata de orações e superlativos surgiu da experiência pessoal e comunitária de salvação ou de transformação ou do bem-estar, que eles tiveram em ou por meio deste Jesus. Assim como o formulou Schillebeeckx: “Podemos encontrar ao longo do Novo Testamento uma experiência fundamentalmente idêntica que sustenta as várias interpretações (de Jesus): todos os seus escritos prestam testemunho da experiência de salvação em Jesus proveniente de Deus” (em Haight 1992, 264).[4] As vidas de pessoas foram tocadas e transformadas por este Jesus; elas mesmas experimentaram, apesar da morte dele, uma relação viva e vivificante com ele; eram dedicadas a ele; estavam enamoradas dele. E falavam a linguagem de pessoas enamoradas – “você é o meu único”.

Não foi apenas uma relação pessoal, individualista (“só eu e Jesus”); foi uma relação que as pessoas queriam compartilhar, pois elas sentiam que outros também podiam chegar a ter a mesma experiência de Jesus e usar a mesma linguagem de amor.[5] Mesmo assim, se consideramos esse amor ou afirmações de confissão tipo “Filho único” ou “um só mediador” e as transformamos em asserções meramente doutrinais ou teológicas, e se nós depois usamos estas confissões para a tarefa negativa de excluir outros em lugar de para o propósito positivo de proclamar o poder salvador de Jesus, então temo que tenhamos abusado destes textos. Temos sido infiéis com eles.

Contudo, se as raízes da ortopraxia por detrás do discurso do Novo Testamento sobre Jesus incluem não apenas a prática de devoção e de espiritualidade, mas também, e especialmente, a práxis de seguir e agir como Jesus, então nós podemos descrever essas declarações de “único” sobre Jesus como uma linguagem de agir, ou, como os estudiosos a formulam, uma linguagem performativa. Quando os antigos cristãos atribuíram a Jesus esses termos sublimes, como Palavra de Deus ou Sabedoria de Deus ou Filho de Deus, não se empenharam principalmente para apresentar o mundo com uma definição filosófica ou dogmática; antes, eles estavam se declarando e estavam convidando outros a serem discípulos de Jesus, a segui-lo no amor a Deus e ao próximo e no trabalho em prol do que Jesus chamou de Reino de Deus. O propósito de confessar a fé era seguir, não o inverso.

Portanto, como insiste Jon Sobrino, deveríamos procurar pelo que ele chama de “equivalência práxica”, quer dizer, o poder de movimento atrás e dentro de toda a linguagem sublime sobre a divindade e unicidade de Jesus. Quando os primeiros discípulos insistiam em títulos de Jesus como salvador e mediador, estavam tentando colocar numa linguagem sua decisão de segui-lo e de continuar a vida dele de viver e amar. Chamar Jesus de “Filho único de Deus” não tinha em vista principalmente uma definição ontológica, imutável de sua natureza, mas antes, uma declaração de um caminho de vida baseado em Jesus. “Seguir é a forma práxica de aceitar a transcendência de Deus; e seguir Jesus é a forma práxica de aceitar a transcendência de Jesus” (Sobrino 1988, 31-32).

Se o propósito principal da linguagem de “único” do Novo Testamento era performativo, um chamado a agir “sem nenhuma relação à prática redentora e libertadora de cristãos”, então qualquer discurso de redenção ou unicidade “permanece simplesmente em um vácuo vazio e especulativo” (Schillebeeckx 1990, 44-46). “A história da vida de Jesus deve ser continuada em seus discípulos; somente assim é significativo falar da unicidade e de ser diferente do cristianismo” (ibidem, 168). É assim como os cristãos devem ser fiéis a essa linguagem de teor exclusivo no Novo Testamento – seguindo Jesus e continuando o seu modo de viver em suas próprias vidas – não excluindo outros. Qualquer exclusão possível de outros chegará somente como uma consequência necessária de seguir Jesus, não como um pré-requisito desse seguimento.[6]

Mesmo que os cristãos antigos ou os autores do Novo Testamento tivessem interpretado sua própria linguagem literalmente e tivessem acreditado que não havia outros nomes que pudessem salvar (o que acho que fizeram), esta não era a intenção principal, o conteúdo essencial, da sua linguagem. Foi uma linguagem de ação e não uma linguagem exclusiva; ou, eles usaram a terminologia exclusiva (como “Filho único”) para chamar a si mesmos e a outros à prática do discipulado. Hoje em dia, caso seja possível remover as implicações exclusivistas destes textos e ainda preservar o seu chamado a agir como Jesus, permanecemos fiéis a esta linguagem. É isso que estou insistindo neste capítulo: que a fidelidade a confissões de fé sobre Jesus do Novo Testamento é essencial e um assunto principalmente de agir com e como Jesus, e não de insistir em que ele é acima de todos outros.

 

Não há outro nome?

Seria útil adotar estas pautas sobre a fidelidade ao testemunho do Novo Testamento a um texto concreto. Podemos tomar uma das afirmações de maior teor exclusivo do Novo Testamento: “Não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). O próprio contexto já nos adverte de usar este fragmento para descartar extra-judicialmente todos os outros testemunhos antes de poder apresentar Jesus. Será que o problema em questão era “não uma das religiões em relação, mas a cura pela fé”; quer dizer, em poder de quem Pedro e João acabam de curar o homem aleijado (Robinson 1979, 105), e, no sentido mais amplo, em poder de quem sofreram a transformação que era tão evidente para os seus próximos judeus? O fragmento comunica uma resposta clara: não pelo poder próprio de Pedro e João, mas pelo poder que se encontra no nome e na realidade de Jesus o Cristo.

Por isso, a intenção da linguagem não é filosófica/teológica – para definir Jesus em relação a outros líderes religiosos; antes, ela é claramente práxica, performativa – para chamar outros a reconhecerem e aceitarem o poder que está disponível para eles em Jesus (Stendhal 1981; Starkey, 69-71). Outros fragmentos do relato tornam essa intenção evidente: “É em nome de Jesus Cristo que este homem se apresenta curado, diante de vós (At 4,10)... Graças à fé em seu nome, este homem a quem contemplais e a quem conheceis, foi o Seu nome que o revigorou” (At 3,16). A implicação é evidente: se podemos confiar no poder deste nome, os membros do nosso corpo podem ser também fortalecidos para missões que, por ora, parecem ser impossíveis, tão impossíveis quanto aquela de caminhar da pessoa aleijada. At 3,23 deixa até mais claro que Pedro estava falando sobre o poder de Jesus, o profeta, que nos chama a agir: “E todo aquele que não escutar esse profeta (profecia de Moisés), será exterminado do meio do povo.”

Quero repetir que esse discurso está nos dizendo que corremos um grande risco se não escutamos e não seguimos este profeta. De fato, “Não há outro nome”, como uma linguagem performativa e de ação, é uma a afirmação positiva em sua formulação negativa: ela nos conta que todas as pessoas devem escutar a este Jesus; não diz que ninguém mais deveria ser escutado ou de ninguém mais deveríamos tomar conhecimento. O enfoque, então, está no poder salvífico, cujo mediador é o nome de Jesus, e não na exclusividade do nome. Se encontramos em nosso diálogo que este poder da libertação é experimentado por meio de outros nomes, então o espírito deste fragmento em Atos dos Apóstolos nos chamaria a estarmos abertos a eles. Qualquer um que possa curar autenticamente um aleijado atua como mediador deste nome. Certamente, para Jesus – assim como para seus antigos seguidores – o mais importante foi que aleijados fossem curados, e não que eles fossem curados somente pelo nome de Jesus.

 

O que acontece com o pluralismo religioso do mundo do Novo Testamento?

Contudo, como ouvimos dos críticos no cap. 3, os cristãos antigos excluíam outras ideias e líderes religiosos; eles utilizavam textos tipo “não há outro nome” como advertências à comunidade para manter distância dos próximos de outras religiões. Assim como os críticos nos fazem lembrar, o mundo do Novo Testamento estava abundando da diversidade religiosa e os antigos seguidores de Jesus respondiam conscientemente a essa realidade com suas asserções cristalinas sobre a unicidade exclusiva (ou ao menos inclusiva) e sobre a normatividade de Jesus. Os discípulos antigos não pegaram carona com aquele trio elétrico cultural de confusão religiosa que atravessava a maior parte do Império Romano.

Essas admoestações devem ser levadas a sério. Ao proclamar o “novo contexto” de uma aldeia global de diferentes religiões, os defensores atuais do pluralismo esqueceram que o contexto não é tão novo; algo bastante semelhante apinhou-se em torno do berço da religião cristã recém nascida. Apesar de admitir isso, tenho que fazer um outra pergunta, em minha opinião, essencial: Por que os antigos cristãos parecem rejeitar tanto este pluralismo religioso desenfreado da sua época?[7] Levanto a hipótese que, entre as várias razões que evidentemente estavam em jogo, uma das fontes mais poderosas desta resposta basicamente negativa para o pluralismo religioso daquela época surgiu do que nós chamamos de conteúdo performativo ou ético das crenças das comunidades cristãs. Esta rejeição, em outras palavras, era mais uma questão de ortopraxia do que de ortodoxia.

Os cristãos antigos rejeitaram o pluralismo religioso da sua época não porque ele estava contra a fé deles na unicidade de Jesus, mas porque não podia ser conciliado com a ação correta ou com a visão ético-social presente na mensagem de Cristo sobre o Reino de Deus. Foram antes motivações soteriocêntricas ou reinocêntricas e menos convicções cristocêntricas ou monoteístas que causaram esta rejeição do pluralismo – embora estas motivações não tivessem sido expostas exatamente nesta forma ou linguagem que estou usando agora.

O meu argumento principal para defender essa hipótese é um outro fato histórico, descuidado por alguns dos críticos. Como admite Frans Jozef van Beecks, “O pluralismo moderno difere muito do pluralismo do séc. 1” (van Beeck 1985, 33-34). Igualar o pluralismo do mundo do Novo Testamento com o do nosso mundo é, falando historicamente, ser simplista ou desinformado. A diferença principal entre os dois mundos é que o pluralismo do séc. 1 estava mais inclinado para – de fato, penetrado com – o relativismo e/ou o sincretismo. A tolerância religiosa estava disposta a tolerar qualquer coisa. Deuses foram aceitos não por causa de uma verdade inerente, mas porque eram divindades locais, ou porque respondiam à fantasia religiosa de alguém, ou porque era uma distração absorvente ou do tédio ou da frustração. De fato, diferenças não tinham importância, especialmente nos cultos sincréticos.

É por isso que os cristãos antigos encontravam-se rejeitados por essa diversidade e pela tolerância religiosa. Ela simplesmente teria absorvido e neutralizado a nova visão de Jesus do Reino; além disso, ela teria tolerado, simplesmente para o bem da tolerância, outras visões que eram opostas a esse Reino. Eles rejeitaram o pluralismo, então, não porque ele estava contra o papel ou contra a natureza de Jesus Cristo, mas porque ele estava contra o tipo de Deus e contra o tipo de sociedade que eram integrais para a visão de Jesus do Reino de Deus.

Se hoje em dia, como mantêm os teólogos correlacionais, a diversidade religiosa pode ser afirmada sem ser sugada no sincretismo ou numa tolerância indolente; se, ao contrário, o diálogo e o pluralismo religioso podem ser meios importantes, talvez até necessários, de trabalhar em prol da justiça eco-humana que constitui a pulsação do Reino de Jesus – então podemos supor que os antigos cristãos teriam estado todos em favor dela. Uma vez mais, as normas de julgar têm a ver principalmente não com o corrigir a fé, mas com o corrigir a ação.

 

 “Verdadeiramente” não precisa de “unicamente”

No que segue tratarei de aplicar as pautas que acabamos de revisar por uma aprovação fiel do testemunho da comunidade cristã sobre Jesus o Cristo. Reconhecendo que essa fidelidade é principalmente (embora não exclusivamente) um assunto de ortopraxia e não de ortodoxia, e compreendendo a linguagem do Novo Testamento e da tradição sobre Jesus como principalmente performativa e orientada pela ação, quero apresentar agora uma sugestão de como os cristãos podem compreender a unicidade de Jesus de tal maneira que possam permanecer numa corrente fiel ao testemunho cristão e, ao mesmo tempo, estar verdadeiramente abertos para uma conversa e cooperação autêntica com pessoas de outras fés. Nesta seção descreverei as qualidades ou os atributos da unicidade de Jesus – tanto as características que são essenciais para considerá-lo único como essas que não são essenciais. Isso poderia parecer um exercício bastante duro e abstrato. Não é assim. O que estou tratando de descrever aqui é a forma em que os cristãos realmente experimentam, ou podem experimentar, a unicidade de Jesus – como sentem a especificidade dele, seu papel salvífico na vida deles. Obviamente, estou falando aqui, em grande parte, da minha própria vida cristã e de esforços de ser um discípulo de Jesus; eu confio que a minha experiência possa refletir ou esclarecer a experiência de outros cristãos.[8]

A revisão em que estou insistindo pode ser formulada concisa e claramente em termos de advérbios, tal como sugeri no cap. 2: verdadeiramente, mas não unicamente.

Os cristãos podem e devem afirmar, em suas próprias comunidades e diante do mundo, que todas as coisas maravilhosas ditas sobre Jesus no Novo Testamento aplicam-se a ele verdadeiramente, mas não necessariamente unicamente. “Verdadeiramente” é um componente essencial da experiência dos cristãos de Jesus e da sua fidelidade a ele; “unicamente”, como afirmo, não é necessário e, de fato, para muitos cristãos até não é possível. O que estou dizendo é de modo algum terrivelmente complicado ou estranho para a experiência cristã; imagino que a maioria dos cristãos poderia verificar essas afirmações quando examina, tranquila e honestamente, sua própria experiência de Jesus e do seu Evangelho de salvação.

Seja o que for que leve uma pessoa a ser um cristão e seguidor de Jesus, graças à sua verdadeira natureza, deve habilitar uma pessoa para dizer que Jesus é verdadeira e efetivamente o instrumento da Divina Presença na vida dele ou dela. Para esta pessoa Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus, o salvador, o mediador, a palavra de Deus, o messias, Aquele que vive. Sem o sentimento – sem uma consciência de experiência – que inspira o “verdadeiro”, uma pessoa não pode ser, não gostaria de ser um cristão.

Contudo, eu não acho que “somente” seja verdade. Quando alguém sabe que Jesus é verdadeiramente salvador, não sabe que ele é o único salvador. A experiência pessoal é limitada e não tem sido capaz de compreender as experiências e mensagens de todos outros, assim chamados, salvadores ou figuras religiosas.

Mas, se os cristãos não sabem ou não podem saber que Jesus é o único salvador, tampouco têm obrigação de sabê-lo para estarem comprometidos com este Jesus. A experiência de Jesus, que os tem habilitado para dizer “verdadeiramente”, habilita-os para continuarem no seguimento dele. Que possa haver outros não é um impedimento para um seguimento fiel. O discipulado requer “verdadeiramente”; parece não exigir “unicamente”.

 

Completo, definitivo, insuperável? Não!

O conteúdo da diferença entre verdadeiramente e unicamente precisa ser explicado mais clara e detalhadamente. Mantendo o enfoque gramatical, permito-me fazê-lo por meio de adjetivos. Primeiro, a partir de uma perspectiva negativa, se os cristãos levam a sério a possibilidade de que Jesus não é a única auto-manifestação do Divino, e não é a única encarnação da verdade e da graça de Deus, então deverão qualificar ou revisar três adjetivos que pregadores e teólogos têm atribuído à forma em que falam sobre a revelação de Deus em Jesus: completo, definitivo e insuperável. Resumirei por que qualificar, ou até remover esses termos da proclamação cristã de Jesus não é só permissível, mas seria até requerido por outras coisas que os cristãos dizem acreditar sobre Deus e sobre a encarnação divina em Jesus.

a) Os cristãos não têm em Jesus a plenitude ou a totalidade da revelação divina, como se ele esgotasse toda a verdade que Deus tinha para revelar. Acredito que essa afirmação é fundamentada em convicções tanto teológicas como bíblicas. Teologicamente, os cristãos, no decorrer da sua tradição, aceitariam sem discutir que nenhum meio finito possa esgotar a plenitude do Infinito. Identificar o Infinito com qualquer finito – quer dizer, conter e limitar o Divino a qualquer forma ou mediação humanas – foi chamado, bíblica e tradicionalmente, de idolatria

No entanto, se essa é a idolatria, então a crença cristã na encarnação do Divino no homem Jesus não seria idólatra? Na verdade não, pois a encarnação significa que a Divindade tem assumido a plenitude da humanidade, e não que a humanidade tem assumido a plenitude da Divindade. Assim como Edward Schillebeeckx nos fez lembrar recentemente, acreditar na encarnação é acreditar que Deus tem assumido todas as limitações da condição humana (Schillebeeckx 1990, 164-168). Assim, se os cristãos querem afirmar que o Divino verdadeiramente foi “feito carne” em Jesus, não podem, ao mesmo tempo, manter que o Divino foi feito carne absoluta e totalmente em Jesus. A carne não pode se converter em um recipiente total do Divino. Além disso, no testemunho bíblico sobre Jesus, embora muitas vezes Jesus seja associado proximamente com a própria atividade e o ser de Deus – ao ser chamado de Filho, Palavra, Sabedoria de Deus – ele não é identificado com Deus.[9] Portanto, quando lemos na Carta aos Colossenses (2,9) que “toda a plenitude da divindade habita corporalmente” em Jesus, isso não pode significar que essa plenitude esteja esgotada por ou restringida a Jesus, como se um corpo ou natureza humana pudesse confinar a infinidade da Divindade. Devemos interpretar esses textos sem destruir o paradoxo que contém. A plenitude realmente está lá, mas não está somente lá; ou melhor, em Jesus encontramos Deus plenamente, mas isso não significa que temos sequestrado a plenitude de Deus.

Semelhante compreensão qualificada da plenitude parece caminhar na mesma direção que a antiga doutrina patrística do Logos ou Palavra divina, embora ultrapasse essa doutrina. Ao afirmar e tratar de captar a compreensão de João sobre Jesus como a encarnação do Logos, os teólogos cristãos antigos reconheciam que este Logos não era meramente confinado a Jesus; a Palavra está ativa no mundo antes de Jesus e continua sendo ativa depois dele.[10] Portanto, os cristãos não podem simplesmente anunciar que Jesus é a plenitude da Palavra ou da Divindade, e deixá-lo assim. Essas afirmações devem ser qualificadas para reconhecer e afirmar tanto a universalidade como a incompreensibilidade do Divino. Acho que semelhante “afirmação-com-qualificação” se expressa na distinção utilizada comumente: cristãos podem e devem proclamar que Jesus é totus Deus – totalmente divino, mas eles não podem afirmar que Jesus é totum Dei – a totalidade do Divino (Robinson 1979, 104.120)

b) Os cristãos tampouco deveriam ostentar uma Palavra de Deus definitiva em Jesus, como se fora dele não pudesse haver outras normas para a Verdade Divina. Repetindo, afirmar uma condição definitiva sobre qualquer coisa significa manter que não se pode dizer sobre isso nada essencialmente novo. Anunciar que alguém possui a Verdade Divina definitiva é alegar que a Sabedoria, que ultrapassa todo conhecimento, e o Amor, que é eternamente criativo, foram depositados num recipiente ao qual nada pode ser acrescentado. Repetindo, se for isso que os cristãos compreendem quando dizem possuir o depósito definitivo da fé, então o seu depósito parece se enquadrar na definição de um ídolo.

Além disso, a forma em que os cristãos falam sobre sua revelação como definitiva ou como a norma que exclui todas as outras normas parece desaparecer diante da natureza essencialmente escatológica da verdade estimulante, feita acessível por Jesus; a verdade que ele revelou, embora absolutamente confiável e de exigência do nosso compromisso total, não foi um produto final. Havia mais por vir; sempre haverá mais por vir enquanto continuamos esta peregrinação terrestre. Pois desde que o Deus revelado por Jesus permaneça Deus, ninguém pode ter a palavra final sobre semelhante Deus.

Alguns teólogos cristãos expressaram medo ou advertência de que, quando questionamos a qualidade de ser definitiva ou exclusiva da encarnação divina em Jesus, estamos desmantelando a principal crença cristã na Trindade (Braaten 1994). Ao contrário, considero que estamos aprofundando e ampliando esta crença. Ao continuar afirmando a autenticidade e confiabilidade da presença poderosa da Palavra de Deus em Jesus, estamos afirmando também que esta Palavra não pode ser restringida, que ela pode bem nos surpreender e instruir em qualquer lugar. Até Tomás de Aquino reconheceu a possibilidade de a Segunda Pessoa da Trindade poder ser encarnada em outras naturezas humanas além da de Jesus. “Não podemos dizer que a pessoa divina, ao assumir uma natureza humana, não pode assumir outra.”[11] Leonardo Boff tenta tornar a afirmação estonteante de Tomás um pouco menos ameaçadora:

Nada repugna também que outras Pessoas divinas se tenham encarnado. O mistério de Deus Trino é tão profundo e inesgotável que jamais pode ser exaurido por uma concretização como aquela que se realizou dentro do nosso sistema galáxico e terrestre... Se essa (isto é, a encarnação de Deus em Jesus) não precisa ser um modo absoluto de comunicação de Deus à sua criação, em nada tira seu valor para nós. Apenas que devemos nos manter abertos para as infinitas possibilidades do mistério de Deus (Boff 1978, 216-217).

c) Consequentemente, a palavra salvífica de Deus em Jesus não pode ser exaltada como insuperável, como se Deus não pudesse revelar mais de plenitude de Deus em outras formas em outros tempos. Manter que Deus pode proporcionar uma revelação que conteria a verdade de Deus no sentido de não permitir que algo mais seja dito, seria análogo àquele enunciado alucinante, praticado frequentemente em aulas de catecismo da escola primária, que perguntava se Deus podia criar uma rocha tão pesada que nem ele conseguisse erguê-la! Então, repetindo, parece que manter um pacote da Verdade Divina que é insuperável significa levantar um ídolo. Isso pareceria também contradizer ou excluir o papel do Espírito Santo que Jesus afirmou no Evangelho de João: “Tenho ainda muito que vos dizer, mas não podeis agora suportar. Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena” (Jo 16,12-13). Se acreditamos no Espírito Santo, devemos acreditar que sempre há “mais por vir”.

Portanto, até alguém como Jon Sobrino, que é profeticamente sensível para qualquer tentativa de diluir ou “pacificar” as exigências de Jesus e do Reino, adverte contra os perigos do que ele chama de uma “mera jesusologia” ou de uma “redução cristológica”. Com isso ele entende a diminuição da realidade do Reino de Deus ao próprio Jesus, de modo que, em Jesus, teríamos a presença total ou insuperável do Reino. Sobrino lembra a seus próximos cristãos que Jesus não é “a última coisa que Deus pode planejar para história” e que a encarnação da Palavra em Jesus não “representa a realização da vontade final de Deus”. Em vez de uma “redução cristológica” precisamos de uma “concentração cristológica” – um enfoque em Jesus que convida ao compromisso e não exclui a imagem e o poder mais amplo do Reino (Sobrino, 41-42; também 1987, 51).

A razão pela qual Sobrino e teólogos da libertação estão preocupados com uma redução insuperável do Reino a Jesus não é ortodoxia, mas ortopraxia – não uma pureza doutrinal, mas a vida cristã. Se Jesus é absolutizado como total, final ou insuperável, a existência cristã é entendida com demasiada facilidade como ser principalmente uma confissão de ou uma relação pessoal com Jesus, em vez de ser um compromisso a trabalhar com ele em prol do Reino de Deus.

As dificuldades práticas que a redução cristológica apresenta são mais claras. Quando se faz da pessoa de Cristo o absolutamente absoluto, afirma-se frequentemente que ele é o Reino de Deus, que no Tu de Cristo se encontra o último polo referencial da fé. Dessa forma, embora não com necessidade lógica, orienta-se a resposta à mensagem evangélica mais na linha da fé, do contato pessoal com Cristo, do que na realização do Reino de Deus (Sobrino 1982, 53).

 

Universal, decisivo, indispensável? Sim!

Contudo, não podemos parar ali. O discipulado e a fidelidade ao testemunho do Novo Testamento exigem que os cristãos conheçam e proclamem Jesus como a verdadeira presença salvífica de Deus na história. Se os cristãos não precisam mais insistir em somente, então devem continuar proclamando verdadeiramente. Ao desembalar o conteúdo desse “verdadeiramente”, podemos dizer que os cristãos devem anunciar Jesus para todas as pessoas como uma manifestação universal, decisiva e indispensável da verdade e da graça de Deus. De novo, permito-me esclarecer brevemente o que cada um desses adjetivos contém.

a) A palavra de Deus em Jesus é universal na medida em que seja experimentada como um chamado não apenas para cristãos, mas para pessoas de todos os tempos. Em minha opinião, isto acontece por meio de tradições múltiplas do Novo Testamento – a insistência em que as Boas Novas sejam boas não apenas para um grupo particular de fiéis judeus, mas para todas as pessoas e, portanto, para que os seguidores de Jesus tenham que ir ao mundo inteiro, para todas as nações, anunciando estas Boas Novas (Mt 28, 19). Diluir a universalidade de pretensões da verdade cristã é violar o testemunho bíblico. [12] No entanto, é também violar a forma em que a verdade é experimentada. Se algo é verdade, especialmente quando é a verdade que toca o coração de como percebo o mundo e de como vivo a minha vida, não pode ser verdade somente para mim. Deve ser verdade também para outros. Penso que a declaração clara de Michael Polanyi será apropriada para maioria das pessoas: “Qualquer contato pessoal com a realidade exige inevitavelmente universalidade” (citado em Maguire 1993, 63). Certamente, a minha percepção da verdade é sempre limitada e condicionada. Porém, o que eu percebo não está confinado por essas limitações; deve ser “traduzível” a outras limitações e condicionamentos. Como sal que perdeu o seu sabor, a verdade que não é universal não vale muito.

O que estou dizendo sobre a universalidade de pretensões da verdade está, talvez, incorporado mais convincentemente na discussão contemporânea de “clássicos”. Como mostra a história da literatura, ou qualquer programa da literatura de nível universitário de hoje, uma parte da literatura considerada como clássica não pode limitar-se à sua cultura de origem (apesar de ser o mais apreciada e amada em seu lugar de origem). Como Gandhi descobriu, um hinduísta pode encontrar uma verdade convincente nos evangelhos; Merton pôde dizer o mesmo do Tao Te Ching e dos escritos de Chuang Tzu (Merton 1969). Descobrimos que clássicos possuem uma “contemporaneidade perpétua” (Kermode 1975, 17-18). “Por sua natureza, (um clássico) não pode ser confinado a um único círculo de apreciação. Sua cidadania tem uma extensão humana... Um clássico é conversa humana no seu mais comunicativo” (Maguire 1993, 63). Beber das fontes da verdade é querer compartilhar essa bebida com outros, todos os outros.

b) A revelação dada em Jesus é também decisiva. Ela nos sacode, desafia e chama a mudar perspectiva e conduta. Faz uma diferença em nossa vida; esta diferença, muitas vezes, se não sempre, “nos isola” (decidere) de outras perspectivas e formas de viver. Portanto, dizer que Jesus é decisivo significa que ele é normativo.[13] Essa normatividade, segundo Schillebeeckx, é de tom comum em várias vozes do Novo Testamento: “Segundo o testemunho do Novo Testamento, para os cristãos, Jesus tem uma relação normativa e essencial com o reino universal de Deus para todos os homens e mulheres... As citações da Escritura (aquelas que exaltam Jesus) indicam claramente a consciência cristã de que Deus revelou a si mesmo em Jesus de Nazaré dessa mesma forma, para manifestar sua vontade de salvar toda a humanidade de uma maneira decisiva e definitiva” (Schillebeeckx 1990, 144-145, também 121).

É notável que Schillebeeckx descreve a revelação divina em Jesus como decisiva e definitiva. Isso parece ter lógica, pois com razão poderíamos perguntar como uma verdade pode ser decisiva e normativa sem ser definitiva e insuperável; se a norma que adotei é decisiva e me convoca a tomar uma decisão por isto em vez de por aquilo, então semelhante norma seguramente requer uma certa finalidade no decorrer da ação que escolhi. Sim, isso é verdade. Contudo, embora semelhante norma me chame a esclarecer decisão e forma de agir, não nega absolutamente a possibilidade de eu poder chegar a outras percepções e a outras decisões que, embora não contradigam minha decisão original, são muito diferentes dela. Em outras palavras, uma norma decisiva poderia negar algumas outras normas, mas ela precisa não excluir todas as outras normas. É decisiva, mas não final ou insuperável.[14]

Roger Haight faz a mesma diferença mais clara e concretamente quando afirma que, em relação a pessoas de outras tradições religiosas, Jesus oferece aos cristãos uma norma negativa em vez de uma positiva. Embora os cristãos possam imaginar que Deus poderia ter mais a revelar à humanidade do que se deu a conhecer em Jesus, eles não podem imaginar que semelhante revelação contradiria os componentes centrais da verdade que eles têm encontrado em Jesus[15] (Haight 1989, 262; também Ogden 1992, 101-102). Portanto, ao oferecer essa norma, a boa nova de Jesus define Deus, mas não confina Deus; ela revela o que os cristãos sentem que é essencial para um conhecimento verdadeiro do Divino, mas não proporciona tudo o que constitui esse conhecimento.

Com semelhante compreensão, de como Jesus é decisivo e normativo, acho que podemos fazer frente às preocupações desses cristãos que sustentam que as novas visões da unicidade de Jesus vão contra o que eles percebem da autoconsciência de Jesus como o profeta final..[16] Admitindo que foi Jesus quem se considerava assim, e que ele estava convencido que o Reino de Deus estava chegando por meio de sua mensagem e sua pessoa, percebo que uma compreensão de Jesus como aquele que transmite a palavra decisiva, mas não total de Deus, habilita cristãos a serem fieis tanto ao adjetivo como ao substantivo deste título de “profeta final”. Quando Jesus se considerava como “final” (ele nunca usou essa palavra) estava convidando todas as pessoas a receberem sua mensagem com uma total seriedade, pois ela os estava convidando a tomarem uma posição, a decidirem a favor ou contra do Reino de Deus. No entanto, na medida em que ele percebia que era um profeta (a palavra usada por ele provavelmente), quereria que todos aqueles que o seguiam autenticamente fossem abertos para qualquer lugar e a qualquer pessoa por meio do qual for realizado esse Reino. A sua mensagem normativa não exclui necessariamente outras mensagens.[17]

c) Finalmente, os cristãos continuam proclamando a verdade dada a conhecer em Jesus como indispensável. Embora esta qualidade da unicidade de Jesus pareça mais imponente que as outras duas que acabamos de analisar, ela surge delas. Se eu experimento que algo é verdade não apenas para mim, mas para outros, e se esta verdade enriqueceu e transformou a minha vida, sinto automaticamente que ela pode e deve fazer o mesmo para com outros. Então, para os cristãos, encontrar Jesus como alguém que manifesta a realidade e o âmbito de Deus, e alguém que os convida decisivamente a jogarem sua sorte com esta visão, a mensagem de Jesus é experimentada como algo “necessário”, algo sem que não conseguimos ver a riqueza de quem é Deus e o que Deus é capaz de fazer no mundo. Repetindo, com palavras de Jon Sobrino: “O próprio Jesus, então – o que ele faz e diz, o que sofre e o que lhe acontece – torna-se essencial para uma compreensão da vinda do Reino e da forma de realização dessa vinda” (Sobrino 1988, 30).

Em outras palavras, conhecer Jesus é sentir que os budistas, os hinduístas e muçulmanos também precisam conhecê-lo; isso significa que eles precisam reconhecer e aceitar a verdade que ele revela (embora isso não signifique necessariamente que eles se tornarão membros da comunidade cristã). Então, parece-me que é inerente a convicção, na experiência cristã de Jesus, de que qualquer que não conheceu e, de alguma maneira, não aceitou a mensagem e o poder do Evangelho carece de algo em sua verdade de conhecer e viver. Qualquer que seja outra verdade sobre o Último e sobre a condição humana, existente em outras tradições, essa verdade pode ser aumentada, esclarecida – talvez até corrigida – por meio de um encontro com as Boas Novas transmitidas em Jesus.[18]

Num sentido qualificado, mas ainda real, pessoas de outros caminhos religiosos são “incompletas” sem Cristo. Até poderíamos dizer que Jesus o Cristo é “necessário” para elas terem uma compreensão maior da condição humana. Devo acentuar que isso não significa que essas pessoas, sem Cristo, sejam imperfeitas ou inferiores aos cristãos, ou perdidas sem Cristo. John Hick perguntou como ou por que Cristo é indispensável: será que é do modo como a penicilina é indispensável para um agonizante, ou como vitaminas são necessárias para uma saúde melhor (em Swidler e Mojzes 1996)? Acho que a indispensabilidade de Cristo está em algum lugar no meio disso. Talvez seja semelhante a um analfabeto que tem uma vida feliz e gratificante; quando aprende a ler, algo que antes não existia é acrescentado à sua vida, algo que não depreciou o que ele tinha antes, mas o aumentou. A pessoa é, de certo modo, mas claramente um ser humano mais completo e mais consciente – talvez um budista ou um hinduísta melhor.[19]

Assim, este é um esboço básico de uma reinterpretação da unicidade de Jesus: Jesus não é a verdade total, decisiva é insuperável de Deus, mas traz uma mensagem universal, decisiva e indispensável. É importante notar que na última frase eu disse “uma” em lugar de “a”, pois se não insistimos mais em que Jesus é a única palavra salvífica de Deus estamos abertos à possibilidade – de que há outras manifestações universais, decisivas e indispensáveis da realidade divina além de Jesus.[20] Assim, se os cristãos estão profundamente convencidos de que qualquer que seja a verdade existente em outras tradições, pode ser iluminada, completada, talvez transformada pela Palavra que lhes tem sido dada, da mesma maneira devem estar profundamente abertos a serem iluminados, completados e transformados pela Palavra dita e encarnada para eles em pessoas de outros caminhos religiosos. Roger Haight descreve como teólogos cristãos estão procurando este equilíbrio entre o particular e o universal, entre afirmar sua própria norma e, mesmo assim, continuar abertos a outras normas:

Se uma pessoa mantém que Jesus é normativo para sua própria salvação, deve, como um ser humano, em nome do princípio de não-contradição, afirmar que Jesus é universalmente relevante e normativo para todos os seres humanos. Porém... a explicação do status de Jesus deve ser de tal maneira que ele não seja exclusivo Deve também permitir a possibilidade de outras figuras de um status igual que também possa revelar algo de Deus que seja normativo. De fato, se Deus é como Jesus revela que ele é, quer dizer, um salvador universal, devemos supor que há outras mediações históricas desta salvação (Haight 1992, 280-281).[21]

Esta nova interpretação da unicidade de Jesus busca promover a transformação tanto de outras religiões como do cristianismo. Somente por meio do diálogo podemos saber o que esta transformação implicará e o quanto afetará outras fés e o cristianismo.

 

Uma unicidade relacional

Aqueles que se relacionam com Jesus o Cristo como único verdadeiramente, mas não somente – a Palavra e Presença de Deus verdadeiramente, mas não somente – se encontrarão aproximando a uma imagem da unicidade de Jesus bastante diferente das visões tradicionais, uma imagem, como penso, mais em harmonia com o quadro bíblico de Jesus. Para a maior parte da história das Igrejas e para muitos cristãos de hoje, pintar Jesus como único significa vê-lo ficar parado sozinho.. Na visão da unicidade de Jesus estávamos falando que ele deve ficar parado com outros. Estávamos falando de uma unicidade relacional, não de uma unicidade solitária que coloca outros para fora do quadro. Afirmar Jesus como a Palavra de Deus verdadeiramente é conceder-lhe uma distinção que pertence somente a ele; acrescentar que ele é a Palavra de Deus, mas não somente é também ver esta distinção como uma que deve ser trazida a uma relação com outras Palavras possíveis. Jesus é uma Palavra que pode ser compreendida apenas em conversas com outras Palavras.

Penso que isso tem um sentido teológico. O modelo cristão trinitário de Deidade compreende Deus como autocomunicativo; a natureza de Deus requer que Deus seja Palavra, o que significa que Deus fala ou se torna Palavra. Isto significa, aplicado a uma ordem finita e histórica, que a Palavra Divina deve expressar a si mesma em palavras; o Logos, ao se tornar encarnado na história, terá que ser os logoi spermatikoi: as palavras-sementes múltiplas jogadas no campo da história. Como o formula Anthony Kelly, a afirmação cristã de Deus como Palavra na história prepara fundamentos para uma “conversa global” (Kelly 1989, 233-234). Ele amplia a poesia do Prólogo de João:

A fé cristã na Palavra feita carne nos leva progressivamente à percepção que a “carne” é essencialmente uma “conversa”. Uma revelação contínua na história exige tanto seu tempo de escutar como o de falar, no mundo da presença mútua que está em expansão. A Palavra não é encarnada num grito imperialista que abafa outras vozes, mas como um discurso, sempre original e que cura, nas condições da fala humana. Se a Palavra é Deus, a verdade inteira não tem sido ouvida. É a verdade inteira que é a verdade que cura.

Uma compreensão da unicidade de Jesus faz também um bom sentido filosófico. Como dizíamos antes, não existe algo como um fato isolado. Isso significa que tampouco há algo como uma palavra nua e crua.

Todas as palavras, como todos os fatos, vêm vestidas de formas e culturas particulares; elas têm que ser interpretadas. O sentido de uma palavra não é simplesmente uma fruta a pegar da árvore; de preferência, ela deve ser processada antes de ser consumida e apreciada. Assim, como admite Frans Josef van Beeck, se os cristãos acreditam que, na Palavra de Deus em Jesus, “Deus recebeu definitivamente a humanidade e o mundo na vida divina”, devem lembrar também que “a plenitude deste compromisso divino permanece um assunto de esperança, isto é, de uma profissão de fé que permanece verdadeira somente na medida em que seja interpretada perspectivamente”. Semelhante pretensão de uma revelação definitiva “depende inteiramente do discernimento, isto é, funciona no nível de interpretação” (van Beeck 1991, 559).

A Palavra “definitiva” de Deus em Jesus deve ser interpretada – e interpretada perspectivamente. Isso significa: no meio das perspectivas, múltiplas e mutáveis, da história; significa também: em conversa com outras Palavras na história. Sem uma conversa com outras Palavras, os cristãos não podem compreender verdadeiramente o que significa a Palavra “definitiva” em Jesus! Isso, certamente, torna pretensões “definitivas” muito menos imperialistas e muito mais relacionais.[22]

O que eu chamo de “unicidade relacional” foi designado também como “unicidade complementar” ou “unicidade inclusiva” (Thompson 1985, 388-393; Moran 1992). Para William Thompson, se acreditamos num Deus kenótico ou autoesvaziante, isto é, que “o Divino se autolimitou kenoticamente e se revelou dentro de formas culturais, necessariamente limitadas, das variadas religiões e de seus fundadores”, então nós temos que reconhecer também não apenas a unicidade e “a possível determinação” de muitas religiões, mas também sua necessidade de complementar uma à outra (Thompson 1987, 22-24). John Cobb indica a mesma compreensão complementar da unicidade quando responde sua própria pergunta: “Estou afirmando a unicidade cristã, então? Certamente e enfaticamente, sim! No entanto, eu estou afirmando a unicidade também do confucionismo, do budismo, do hinduismo, do islamismo e do judaísmo (Cobb 1990, 91-92). Cada religião é única, porém, não pode permanecer sozinha: Minhas afirmações de caráter exclusivo (leia-se: único) em relação a Cristo precisam não entrar em conflito com as afirmações budistas de caráter exclusivo em relação à percepção do buddahood,[23] cujo exemplo ideal é Gautama... Nós (os cristãos) deveríamos nos esforçar tanto para compartilhar o que tem sido exclusivo ao cristianismo como nos apropriar do que tem sido exclusivo a outras tradições. É isso do que trata um budismo cristianizado e um cristianismo budismizado (Cobb 1984, 177).

Cobb afirma que Cristo “precisa não entrar em conflito” com outras declarações de caráter único. No entanto, Cristo pode entrar em conflito e, às vezes, deve. É por isso que eu prefiro o termo unicidade “relacional” em vez de “complementar” ou “inclusiva”. “Complementar” ou “inclusiva” prenuncia uma sobremesa de pêssego e chantilly; “relacional” promete espinhos e matagais. Quando os cristãos proclamam o “amor puro e ilimitado de Deus” em ação no mundo e, portanto, não insistem em que Jesus é a Palavra de Deus completa, final ou insuperável, eles esperam que, majoritariamente, suas relações com os verdadeiros crentes de outros caminhos realmente serão complementares. Mas, quando os cristãos experimentam também a presença de Deus em Jesus e logo incluem afirmações de caráter universal, decisivo e indispensável, devem preparar-se também para adotar uma postura forte, às vezes em oposição, diante das afirmações de outros. Embora sempre cresçamos por meio de relações, o crescimento pode ser, muitas vezes, doloroso.

Assim, com John Cobb, podemos descrever a fé e o discipulado cristão de maneira concisa e desafiadora: Jesus é o caminho que está aberto para outros caminhos (Cobb 1990, 91). O tipo da verdade que Jesus nos habilita para afirmar e sentir é uma verdade que nos conta que, felizmente e de forma fascinante, há mais verdade por vir. Dizer “sim” a Deus, que se revelou em Jesus, é dizer “sim” ao que Deus ainda tem que revelar para nós. A verdade que conhecemos nos proporciona uma confiança, até uma ansiedade, de enfrentar qualquer verdade que ainda possa vir, não importa quanto seja surpreendente e perturbadora. Assim, num sentido paradoxal, experimentar que Jesus revela a “plenitude” da verdade é estar consciente, ao mesmo tempo, que nós não sabemos o que essa plenitude contém. Contudo, agora nós temos um lugar, uma confiança, para descobrir; permanecemos aqui e essa “permanência” é um ponto de partida do qual podemos passar para estar em algum outro lugar. A “plenitude” de Deus em Jesus, em outras palavras, é uma que nos abre para a “plenitude” de Deus em outros. Portanto, o fragmento da Carta aos Colossenses: “Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9) “não é falar de uma plenitude de Cristo como indivíduo, mas de uma plenitude que inclui outros” (Sobrino 1988, 42).

Querendo expressar este paradoxo de forma diferente, ser cristocêntrico – centrado em Cristo – exige estarmos centrados em outros, estarmos abertos a e em relação com outros. Quando não nos preocupamos com a conversa com outros, não estamos centrados em Cristo. “Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Essa abertura para outros, essa habilidade ao diálogo é uma parte essencial do que significa “ser fiel” a Cristo. Isso exige ter que equilibrar a admoestação, ouvida frequentemente, que seguir Jesus significa voltar-se para trás de outros; ao mesmo tempo, temos que lembrar que, ao seguir a Cristo, temos que seguir – isto é, estar abertos a, em diálogo com – outros. Cristo veste os seus seguidores de firmeza para resistir, mas também de humildade para aprender.

A questão é, então, o que Cristo está fazendo hoje no mundo. Não é difícil pensar essa ação como algo que nos redime da nossa finitude e que rompe nossa tendência de pensar que nossas próprias opiniões são finais e suficientes. É fácil pensar essa ação como algo que nos chama para escutarmos a verdade e a sabedoria de outros... Aprender de outros qualquer verdade que eles têm a oferecer, e integrá-la com os critérios e a sabedoria que temos aprendido da nossa herança cristã é o que parece ser fiel a Cristo (Cobb 1990, 91).[24]

 

 

 


[1] Como indica a citação claramente, o que Panikkar expressa com “obra de Cristo” não deve ser identificado ou limitado à obra de Jesus. Ele explica que, ao escrever seu livro sobre “o Cristo Oculto do Hinduísmo”, ele não se referia ao Cristo conhecido pelos cristãos, mas desconhecido aos hindus; ao contrário, ele se referia “ao Mistério desconhecido a cristãos e conhecido a hindus por muitos outros nomes, mas no qual cristãos inevitavelmente precisam reconhecer a presença de Deus. A mesma luz ilumina corpos diferentes policromamente” (Panikkar 1990b, 122)

[2] Kelsey defende que a autoridade da Bíblia não se encontra em algum conteúdo imutável, mas, antes, em seu poder “de moldar a vida individual e comunal e assim gerar novas identidades” (Kelsey 1985, 51). Este poder pode ser descrito como “o poder do domínio régio de Deus” (ibidem, 57), o que significa que as novas identidades corresponderão aos valores daquilo que os Evangelhos descrevem como o Reino de Deus (ibidem, 58). Sallie McFague encontra a autoridade bíblica no mesmo processo: “Nosso dado primeiro e principal não é uma mensagem cristã para todos os tempos que se concretiza em diferentes contextos; ao contrário, é a experiência de mulheres e homens que testemunham o amor transformador de Deus, interpretado de uma miríade de maneiras” (McFague 1987, 44; cf. também Haight 1990, 211-212). O que esses teólogos descrevem é a experiência feita pela comunidade cristã daquilo que Gadamer chama de “história efetiva”; a verdade de um texto não pode ser encontrada num sentido estabelecido e imutável, mas na maneira pela qual ele continua a ser verdade, numa variedade de expressões, ao longo da história (cf. Schneider 1992).

[3] Algumas pessoas poderiam dizer que estou invertendo o lema escolástico agere sequitur esse, “agir se segue ao ser”. Não é bem assim. Antes, estou propondo uma identificação: esse est agere, “ser é agir”. Penso que essa afirmativa está muito mais próxima à maneira como somos e à maneira como experienciamos a nós mesmos e o mundo.

[4] “Aqui, a metáfora de subjazer é apropriada; a experiência de Jesus como portador da salvação é anterior às, e a base das, várias interpretações de sua identidade e de como a salvação foi alcançada. Esta prioridade não precisa ser concebida como uma prioridade cronológica, como se tivesse sem forma e sem elaboração antes de tomar forma através da meditação e da expressão simbólicas. Em vez disso, a prioridade pode ser vista aqui na capacidade de generalizá-la: um encontro salvífico com Deus mediado por Jesus é distinguível da grande variedade de diferentes elaborações de seu ‘como’ e de seu ‘por que’” (Haight 1992, 264)

[5] Esta afirmação universal sobre Jesus na linguagem neotestamentária do amor é algo que eu deveria ter reconhecido mais explicitamente naquilo que disse em No Other Name?. Agradeço a E. Schillebeeckx, que apontou isto (cf. Schillebeeckx 1990, 162).

[6] Esse entendimento da linguagem do NT sobre Jesus como linguagem de ação ou linguagem performativa é muito semelhante – e talvez essencialmente a mesma – à reinterpretação bem conhecida da natureza da doutrina por George Lindbeck. De fato, as compreensões de Lindbeck oferecem uma orientação maior no difícil empreendimento de reinterpretar crenças cristãs à luz do diálogo com outras religiões. Ele nos impele a ver e usar a doutrina como regras em vez de proposições – como “exemplos de regras em vez de algo que tem um conteúdo constatável e fixo de proposição” (Lindbeck 1984, 104) O que ele quer dizer com “regras” tem a ver com o que eu procuro expressar com “prática”, pois ele afirma que sua visão “torna doutrinas mais efetivamente normativas, ao relacioná-las mais proximamente com a prática” (ibidem, 91). Quando doutrinas devem ser entendidas prioritariamente como regras de vida do que como afirmativas fixas da fé, então podemos empreender a interpretação de uma determinada doutrina perguntando não se ela é fiel àquilo que foi dito no passado, mas se ela é fiel àquilo que foi feito no passado. E para compreender o que foi feito no passado precisamos entender o contexto do passado e relacioná-lo criativamente com o nosso próprio. “A melhor maneira de resumir a diferença prática entre abordagens proposicionais e regulativas é talvez considerar o contraste entre interpretar uma verdade e obedecer a uma regra [...]. Se a doutrina [...] é entendida como uma regra, a atenção se concentra na vida e na linguagem concretas da comunidade. E como a doutrina deve ser seguida em vez de interpretada, a tarefa de teólogos é especificar as circunstâncias temporárias ou permanentes dentro das quais ela se aplica” (Lindbeck 1984, 107).

Quando aplicamos a visão de Lindbeck aos nossos esforços de elaborar uma teologia das religiões, entenderemos a linguagem do Novo Testamento acerca da unicidade de Cristo ou sobre “outros nomes” não como fórmulas fixas e proposicionais, mas como regras de vida. Dessa forma, a fidelidade à fé na unicidade de Jesus não é prioritariamente uma questão de palavras sobre sua natureza, mas uma questão de agir de uma determinada maneira.

[7] Não deveríamos pensar que eles rejeitaram tudo, pois quando as antigas comunidades palestinas de seguidores de Jesus passaram para o mundo grecorromano, elas foram transformadas de uma religião essencialmente judaica para uma grecorromana. Elas absorveram muito desse pluralismo, ou seja, aprenderam muito com ele. A formulação concreta da doutrina da Trindade que temos hoje nasceu dessa união cultural de imagens e construções religiosas e filosóficas judaicas e helenistas.

[8] Leonard Swidler e Paul Mojzes propuseram o conteúdo básico do que segue neste capítulo como um assunto principal da discussão entre teólogos cristãos; cf. The Uniqueness of Jesus: A Dialogue with Paul Knitter (Swidler / Mojzes 1996).

[9] Como mostrou Raymond E. Brown, as ocorrências isoladas onde o NT parece chamar Jesus de Deus são altamente ambíguas. De modo geral, o NT evita qualquer simples identificação de Jesus e Deus (cf. Brown 1967, 23-38).

[10] Justino, I Apologia 46; II Apologia 19,13; Clemente de Alexandria, Stromata 1,13; 5,87; 2; Proteptikos 6,68,2ss.; Orígenes, Comentário a João, I,39.

[11] “O poder de uma pessoa divina é infinito e não pode ser contido por qualquer coisa criada. Por isso não podemos dizer que a pessoa divina, ao assumir a natureza humana, não poderia assumir uma outra [...], pois o não-criado não pode ser limitado pelo criado. Por isto é evidente que, quer consideramos uma pessoa divina de acordo com o seu poder divino, que é o princípio da união, quer de acordo com a sua personalidade, que é a meta da união, precisamos dizer que a pessoa divina pode assumir uma outra natureza humana ao lado daquela que efetivamente assumiu”. (Suma Teológica 3, q.3, a.7).

[12] Aqui tenho certo problema com a maneira pela qual Hans Küng, em seu zelo de promover diálogo, parece restringir o poder transformador da verdade de Jesus somente a cristãos. Com a sua distinção entre perspectivas “externas” e “internas” de religiões, ele sugere que cristãos proclamariam Jesus como salvador somente no ambiente “interno” ou dentro do cristianismo. Küng compara a lealdade a Cristo à lealdade à constituição do país de alguém; assim como ninguém afirmaria que a constituição do seu país valeria também para outros, também não afirmaria que a sua religião valeria para outras pessoas. Parece-me que isto contradiz a firmação do NT acerca da relevância universal daquilo que Deus fez em Jesus Cristo (cf. Küng 1991, 99-100).

[13] Por isso, eu gostaria de esclarecer e qualificar – e isto significa mudar – a terminologia que usei em No Other Name?, quando me debati para formular as características de uma cristologia teocêntrica. Não defendo mais uma “cristologia não-normativa”, porque isto parece implicar que o encontro com Deus através de Jesus não pode ser decisivo, no sentido de não poder nos dar normas pelas quais possamos conduzir a nossa vida e definir as nossas posições (cf. Knitter 1985, cap.9). Naquele tempo, eu me opus a uma cristologia que apresenta Jesus como a norma absoluta, final, plena e insuperável para todos os tempos e todas as religiões. Por isso, hoje, enquanto quero afirmar claramente que Jesus é, sim, normativo, e universalmente normativo, eu continua a questionar se que é, ou pode ser, a única norma dessa qualidade.

[14] Schillebeeckx parece admitir isto indiretamente quando ele, depois de proclamar a verdade de Cristo como normativa e definitiva, acrescenta: “Se esta revelação é também normativa para outras religiões é uma outra questão [..]. Cristãos confessam o que, em sua experiência, Deus lhes fez em Jesus de Nazaré. Por si mesmo, isto não implica qualquer julgamento sobre como outras religiões experienciam a salvação” (Schillebeeckx 1990, 145-146).

[15] Como Haight mesmo indica, precisamos ter grande cuidado para não identificar precipitadamente algo que é genuinamente diferente com algo que é contraditório. Muitas diferenças entre o cristianismo e o budismo que frequentemente foram apresentadas como contradições revelam-se como complementaridades. Um exemplo pode ser a diferença entre a noção budista do não-self e o ideal cristão da nova pessoa em Cristo. Desse modo, quando cristãos dizem que Jesus é uma norma que pode ser aplicada a todas as religiões, estão abertos também para a possibilidade ou probabilidade de que outras religiões possam apresentar aos cristãos normas que comprovam o seu poder sobre a autocompreensão cristã.

[16] Cf. especialmente os alertas de Wolfhart Pannenberg, resumidos acima, Cap.3, p.xxx.

[17] Como veremos no próximo capítulo, a visão acadêmica muito divulgada de que Jesus esperava o fim do mundo durante o tempo de sua vida tem sido exposta a amplas dúvidas (cf. abaixo, Cap.5, nota 5).

[18] Essa noção de indispensabilidade é alcançada por Schillebeeckx em sua convicção de que os cristãos primitivos reivindicaram um “significado constitutivo” para Jesus. “Em seu plano mais profundo, crer em Jesus como o Cristo é o mesmo como confessar e simultaneamente reconhecer que Jesus tem um significado permanente e constitutivo para o acesso ao Reino de Deus e, assim, para curar seres humanos abrangentemente e torná-los íntegros (Schillebeeckx 1990, 121). E ele afirma que esta indispensabilidade pode ser encontrada na “autocompreensão histórica de Jesus: há uma conexão entre a vinda do Reino de Deus e a pessoa de Jesus de Nazaré” (ibidem, 144). Penso que muitos budistas afirmariam de modo semelhante que há “uma conexão entre a vinda da Iluminação e a pessoa de Siddharta Gautama”..

[19] Como já indiquei, o mesmo poderia ser dito do cristão que fica conhecendo “a verdade salvífica” do Buda. Neste caso, a analogia talvez não seja que uma pessoa iletrada aprenda a ler, mas que a pessoa distraída aprenda como sentir o momento presente.

[20] A principal crítica que Schubert Ogden em Is There Only One True Religion [Existe somente uma única religião verdadeira?] faz aos pluralistas é que concluem com demasiada pressa a realidade de muitas religiões verdadeiras enquanto deveriam afirmar apenas a possibilidade. As advertências de Ogden são apropriadas e, espero, bem acolhidas, pois muitos pluralistas anunciam com demasiada facilidade e a priori que, já que todas as outras religiões são verdadeiras, os cristãos precisariam reconhecê-las e dialogar com elas. Ainda assim, eu perguntaria a Ogden se ele está fiel ao seu próprio ponto de partida cristão quando admite somente a possibilidade de que existem outras religiões verdadeiras ao lado do cristianismo. Diante do Deus do amor puro e ilimitado, a quem Ogden encontra no coração da mensagem cristã, e diante da necessidade antropológica de esse amor assumir uma forma histórico-cultural para ser real na vida de homens e mulheres, será que ele não deveria reconhecer que é provável que o amor de Deus se encontra em e através de outras religiões e assim atribuí-lhes verdade, pelo menos em alguma medida? Para poder afirmar verdadeiramente a realidade e eficácia do amor salvífico de Deus para com todas as pessoas, Ogden precisa afirmar a probabilidade de muitas religiões verdadeiras. Isto significa que ele, assim como os pluralistas, entra no diálogo com a expectativa de encontrar o amor de Deus revelado em outras tradições religiosas.

[21] Enquanto Haight concorda basicamente com aquilo que apresentei nesta secção, ele ainda procura preservar os termos tradicionais “caráter decisivo, definitivo, final e até mesmo absoluto de Jesus como o médium de Deus para a salvação”. Mas ele acrescenta imediatamente: “sob a condição de que essas determinações não sejam construídas exclusivamente como a negação da possibilidade de que Deus como espírito atue em outras religiões” (Haight 1992, 282).

Por isso, mesmo quando cristãos afirmam que eles têm a “plena” revelação de Deus em Jesus – enquanto também reconhecem que essa “plenitude” não pode ser ativada, a não ser no empreendimento de um diálogo com outras Palavras em outras religiões – eu não discutiria com eles. Até mesmo quando eles enfatizam que qualquer verdade que possam aprender de outros já estava implicitamente contida na Bíblia, eles afirmam ao mesmo tempo que a “verdade plena” da Bíblia é uma plenitude relacional ou dialogal. Ela não pode ser entendida em si mesma sem conversar com outras (cf. Cobb 1990, 87).

[22] Cobb dá ainda um passo a mais em suas exigências acerca da verdadeira fidelidade a Cristo: “Em fidelidade a Cristo preciso estar aberto aos outros. [...] Preciso estar disposto a aprender, até mesmo se isto ameaça as minhas crenças atuais. [...] Não posso predeterminar quão radicais serão os efeitos dessa aprendizagem. [...] Não posso nem sequer saber se, quando aprendi o que posso aprender aqui e quando fui transformado por ele, ainda verei a fidelidade a Cristo como minha vocação. Não posso nem sequer predeterminar que ainda serei um cristão. É isto que quero dizer com abertura total. Em fidelidade a Cristo preciso estar preparado a abrir mão até mesmo da fidelidade a Cristo. Se for isso para onde eu for levado, permanecer um cristão seria tornar-me um idólatra em nome de Cristo. Isto seria uma blasfêmia” (Cobb 1984, 174-175; itálicos meus). Eu me descubro dizendo sim e não àquilo que Cobb propõe aqui. Teoricamente, ele tem razão. Hipoteticamente, o deus que conheci através de Cristo poderia me afastar de Cristo. Mas, pessoal e existencialmente, isto é inconcebível. Cobb está propondo uma “possibilidade impossível”. É como dizer que a minha esposa me ajudou a alcançar uma abertura e apreciação tão grandes em relação a outras que eu estaria disposto a deixar ela por outra mulher. A minha cabeça me diz que é possível, o meu coração me assegura que não.

[23] N. do T.: no budismo, buddhahood (do inglês) é o estado da iluminação perfeita alcançada pelo Buda.

[24] Cobb dá ainda um passo a mais em suas exigências acerca da verdadeira fidelidade a Cristo: “Em fidelidade a Cristo preciso estar aberto aos outros. [...] Preciso estar disposto a aprender, até mesmo se isto ameaça as minhas crenças atuais. [...] Não posso predeterminar quão radicais serão os efeitos dessa aprendizagem. [...] Não posso nem sequer saber se, quando aprendi o que posso aprender aqui e quando fui transformado por ele, ainda verei a fidelidade a Cristo como minha vocação Não posso nem sequer predeterminar que ainda serei um cristão. É isto que quero dizer com abertura total. Em fidelidade a Cristo preciso estar preparado a abrir mão até mesmo da fidelidade a Cristo. Se for isso para onde eu for levado, permanecer um cristão seria tornar-me um idólatra em nome de Cristo. Isto seria uma blasfêmia” (Cobb 1984, 174-175; itálicos meus). Eu me descubro dizendo sim e não àquilo que Cobb propõe aqui. Teoricamente, ele tem razão. Hipoteticamente, o deus que conheci através de Cristo poderia me afastar de Cristo. Mas, pessoal e existencialmente, isto é inconcebível. Cobb está propondo uma “possibilidade impossível”. É como dizer que a minha esposa me ajudou a alcançar uma abertura e apreciação tão grandes em relação a outras que eu estaria disposto a deixar ela por outra mulher. A minha cabeça me diz que é possível, o meu coração me assegura que não.

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