A Opção
pelos Pobres é Opção pela Justiça, e
não é Preferencial
Para um reenquadramento teológico-sistemático
da Opção pelos Pobres
José María
VIGIL
https://eatwot.academia.edu/JoséMaríaVIGIL
Panamá, Panamá
Situação da questão
Sempre dissemos que
a Opção pelos Pobres fundamenta-se em Deus mesmo, no ser de Deus, e tem, portanto,
natureza “teocêntrica”[1]
: De certa maneira, podemos dizer que Deus mesmo faz opção
pelos pobres, Deus “é” opção pelos pobres. Era um consenso universalmente
sentido que esta Opção pelos Pobres baseava-se precisamente no Amor-Justiça
do Deus bíblico e cristão[2].
Entretanto, com o
advento da “crise da Teologia da Libertação”, alguns autores suavizaram seu
discurso sobre a Opção pelos Pobres, preferindo abandonar a perspectiva do
Amor-Justiça[3], substituindo-a quase
completamente pela da “gratuidade” de Deus como fundamento da Opção pelos
Pobres. Neste novo posicionamento, Deus, simplesmente “prefere” os pobres,
tem uma “fraqueza” misericordiosa, uma “ternura” incontida para com eles,
e não se deverai buscar muitas razões para esse fato, precisamente porque
é “gratuito”.
A Opção pelos Pobres
resultaria ser uma espécie de “capricho” de Deus com relação aos “pequenos”,
aos “fracos”, aos “insignificantes”. É destes que hoje se deveria falar, e
já não mais dos “pobres” no sentido forte[4] do discurso clássico, o qual hoje estaria já ultrapassado.
A própria teologia da Opção pelos Pobres deveria desvincular-se do tema forte
da justiça e ser adjudicada ao tema suave da gratuidade.
Minha tese é que este
deslocamento do acento da Justiça para a Gratuidade de Deus como fundamento
da Opção pelos Pobres deteriora e finalmente faz uso indevido dessa opção
– consciente ou inconscientemente –, ao convertê-la em uma simples “preferência”,
em um “amor preferencial”, uma simples prioridade de ordem na caridade[5], deixando de ser uma verdadeira “opção”,
uma tomada de partido disjuntiva e excludente, como uma opção fundamental,
fundada para nós na própria natureza de Deus.
Não nego que tenha algum sentido afirmar que “Deus tem uma preferência gratuita
pelos pequenos e pelos fracos”; mas sustento que tal “preferência” não pode
ser identificada, em um sentido preciso, com a Opção pelos Pobres, nem muito
menos pode ser posta como fundamento da mesma. Confundir a Opção pelos Pobres
com essa “preferência de Deus para com os pequenos e fracos”, ou com o assim
chamado “amor preferencial pelos pobres”, e aplicar-lhe o mesmo nome de Opção
pelos Pobres, é ser vítima da confusão, ou ceder diante da estratégia de quem
tentou re-significar e ocupar o termo Opção pelos Pobres para despojá-lo de
seu conteúdo próprio. A Opção pelos Pobres original e clássica latino-americana,
a típica da teologia e da espiritualidade da libertação, a Opção pelos Pobres
pela qual morreram nossos/as mártires, e que também nós consideramos “firme
e irrevogável”, é outra, e deve ser diferenciada de qualquer sucedâneo. Uma
fidelidade valente e lúcida deve refutar consciente e expliticamente esta pretensa
fundamentação da Opção pelos Pobres na “gratuidade” de Deus. É o que quero ajudar
a esclarecer. Para tanto, nada melhor que tratar de reajustar sistematicamente
a própria natureza da Opção pelos Pobres.
Primeira tese: em
sentido estrito, Deus ama sem preferências nem discriminações.
Afirmar o contrário seria, em boa parte,
um antropomorfismo. Deus ama a todos/as igualmente, com um amor tão peculiar
para cada pessoa, e ao mesmo tempo tão infinito, que não há possibilidade
de quantificações nem de comparações nesse amor. Toda pessoa pode sentir-se
amada infinitamente por Deus, e ninguém deve sentir-se “preferido” ou discriminado,
nem positiva nem negativamente. Não é possível falar seriamente de “amores
preferenciais” de parte de Deus com relação a alguns seres humanos em detrimento
de outros. A suprema dignidade da pessoa humana e a equanimidade infinita
de Deus o exigem. E tudo que se afaste disso, somente podem ser formas inadequadas
de falar, “demasiado humanas”, antropomorfismos.
Deus não tem parcializações, nem faz “acepção de pessoas”. Não o faz por questões
de raça, nem de cor, de gênero ou de cultura… Deus ama a todas suas criaturas,
com amor realmente “inquantificável e incomparável”, e nisso não cabem nem preferências
nem discriminações.
Segunda tese: Deus opta pela justiça, não
preferencialmente, mas sim alternativa e excludentemente.
Há, contudo, um campo em que Deus é necessariamente
radical e inflexivelmente parcial: o campo da justiça. Aí Deus coloca-se do
lado da justiça e contra a injustiça, sem a menor concessão, sem a menor “neutralidade”,
e sem simples “preferências”: Deus está contra a injustiça e coloca-se do
lado dos “injustiçados” (as vítimas da injustiça). Deus não faz nem pode fazer
uma “opção preferencial pela justiça”[6]:, ao contrário, opta por ela posicionando-se
radicalmente contra a injustiça e assumindo de uma maneira total a Causa dos
injustiçados.
Esta opção de Deus pela justiça não se
fundamenta em sua “gratuidade”, nem é uma espécie de “capricho” divino que
poderia ter sido de outra maneira ou simplemente não ter sido, como se a sanção
divina da justiça obedecesse a um simples voluntarismo ético[7].
A opção de Deus pela justiça fundamenta-se em seu próprio ser: Deus não pode
ser de outra maneira, não poderia não fazer essa opção sem contradizer-se e
sem negar seu próprio ser. Deus é, “por natureza”, opção pela justiça, e essa
opção não é gratuita (e sim axiologicamente inevitável), nem contingente (e
sim necessária), nem arbitrária (e sim fundada per se no próprio ser
de Deus), nem “preferencial” (e sim alternativa, exclusiva e exludente[8]).
Terceira tese: a Opção pelos Pobres é opção
pelos “injustiçados”.
O conceito “pobres”, como parte da expressão
“opção pelos pobres”, causou certa confusão. De fato, se a opção é “pelos
pobres”, explica-se que sobrevenha a tentação de situar na “pobreza” o fundamento
de tal opção, seja identificando falsamente pobreza com santidade (o que se
evitou desde o princípio), ou re-elaborando metaforicamente o conceito de
“pobreza” em diferentes direções[9],
ou derivando-o em direção a qualquer um dos grupos que no Antigo Testamento
parecem ser objeto de uma “preferência” por parte de Deus (os “fracos e pequenos”…),
ou por outros muitos caminhos[10].
Poder-se-á evitar estes desvios tranzendo-se
à luz o papel teológico que o conceito de “pobres” tem concretamente na expressão
“opção pelos pobres”. Teologicamente falando, “pobres” significa aí exatamente
“injustiçados”. Porque Deus não opta pelos pobres porque sejam pobres (material
e/ou economicamente), mas sim porque são “injustiçados”. A pobreza econômica
não é por si mesma uma categoria teológica; o é a injustiça, que pode dar-se
nessa pobreza econômica. Teologicamente considerada, a “opção pelos pobres”
é na realidade “opção pelos injustiçados”[11].
Se é chamada opção “pelos pobres”, isso se deve a que, quoad nos, os
pobres (econômicos) são o analogatum princeps da injustiça e sua expressão
máxima ou por antonomásia.
Falando com precisão teológica, os destinatários
desta Opção pelos Pobres não podem ser identificados sem mais como os “pobres
econômicos” por si mesmos, nem com os “pobres que são bons”, nem com os que
são “pobres em algum sentido”, ou os que têm “espírito de pobres”... (delimitações
todas elas muito flexívies, escorregadias, por causa dos jogos metafóricos
da linguagem), mas sim com os “injustiçados”, sejam pobres econômicos ou não,
metafóricos ou não.
Ao contrário, os “pequenos e os fracos”,
ou seja, todos aqueles cuja “pobreza” não pode ser medida em termos de injustiça[12], não devem ser identificados pura
e simplesmente como destinatários da Opção pelos Pobres, e sim por extensão
metafórica. Podem ser objeto de uma “ternura especial” e gratuita por parte
de Deus e nossa, mas este sentimento e esta atitude não devem ser confundidas
com a Opção pelos Pobres.
Toda problemática humana que possa ser
convertida em injustiça – mesmo que não tenha que ver com a “pobreza” em sentido
literal ou econômico – é objeto da Opção pelos Pobres (porque esta é opção
pela justiça). Assim, a discriminação étnica, de gênero, cultural… como formas
de injustiça que são, e ainda que não se dêem juntamente com situações de
pobreza econômica, são objeto da Opção pelos Pobres. Não o são por serem formas
de pobreza – o que elas de fato não são –, mas sim por serem formas de injustiça.
A opção pela cultura desprezada, pela raça marginalizada, pelo gênero oprimido…
não são opções diferentes da Opção pelos Pobres, mas sim concretizações diversas
da única “opção pelos injustiçados”, a qual chamamos de Opção pelos Pobres.
Quarta tese: a essência teológico-sistemática
da Opção pelos Pobres e seu fundamento é a opção de Deus pela justiça.
Teologicamente falando, em sentido dogmático-sistemático,
a verdadeira natureza da Opção pelos Pobres é a opção de Deus pela justiça.
A “radiografia teológica” da Opção pelos Pobres, o fundamento sobre o qual
se sustenta, o que realmente a constitui, é a opção de Deus pela justiça.
Se ignoramos sua relação com a justiça
e a referimos a uma simples “vontade gratuita” de Deus, a Opção pelos Pobres
extravia-se por caminhos que a desvirtuam, a mistificam e a desnaturalizam,
acabando por convertê-la em um simples “amor preferencial”, ou uma opção opcional,
facultativa, gratuita, arbitrária, contingente, desvinculada da justiça, reduzida
a “caridade” ou beneficência.
A Opção pelos Pobres de Deus é maior que
– e anterior – ao que a Teologia da Libertação latino-americana captou e expresou
como Opção pelos Pobres. A Opção pelos Pobres não é mais do que uma percepção
– importante, mas que não esgota a totalidade – dessa opção de Deus pela justiça.
A Opção pelos Pobres é uma forma nossa de perceber, de expressar e de assumir
essa opção de Deus pela Justiça.
“Opção pelos Pobres” é um nome pastoral, histórico, escolhido em função de
sua compreensão imediata. Contudo, teológico-sistematicamente considerada, ou
seja, dando atenção à sua essência teológica mais profunda, a Opção pelos Pobres
“é” opção pela justiça e o nome que melhor expressaria sua natureza teológica
seria o de “opção pelos injustiçados”[13]. Não advogamos uma mudança de nome; simplesmente
chamamos a atenção sobre o fato de que o nome não corresponde ao que seria uma
“definição essencial”[14] da
Opção pelos Pobres.
Quinta tese: Sendo opção pela justiça,
a Opção pelos Pobres não é preferencial, mas sim disjuntiva e excludente.
Ao contrário, a Opção Preferencial pelos Pobres é simplesmente uma prioridade
e nem sequer é uma “opção”.
A Opção pelos Pobres é uma tomada de posição
espiritual, integralmente humana, e, portanto, também social e política, a
favor dos pobres no âmbito do conflito social histórico, e por isso é uma
opção disjuntiva e excludente[15].
A “Opção (não preferencial) pelos Pobres”
pertence ao campo da justiça e fundamenta-se na própria opção de Deus pela
justiça. Ao contrário, a “Opção Preferencial pelos Pobres» pertence
ao âmbito da caridade[16] e pode ser posta em relação com a
gratuidade de Deus. A Opção pelos Pobres não tem aplicabilidade diante das
pobrezas naturais. A Opção Preferencial pelos Pobres, ao contrário,
somente tem validade para as pobrezas naturais.
A Opção pelos Pobres vê a pobreza como
uma injustiça a ser erradicada mediante o amor político e transformador, mediante
uma práxis social, como ato de justiça. A O Opção Preferencial pelos Pobres,
por sua parte, vê a pobreza como algo lamentável mas talvez natural, como
algo que simplesmente deve ser compensado com atos de generosidade gratuita,
assistencialmente.
A “preferencialização” da Opção pelos Pobres,
ou seja, o deslocamento ou a substituição da Opção pelos Pobres pela Opção
Preferencial pelos Pobres, funciona como um ocultamento das coordenadas da
justiça para olhar a realidade somente a partir da perspectiva da beneficência
ou do assistencialismo. Ou como a redução do amor cristão a uma misericórdia
privatizada e a uma solidaridade espiritualizada. Um cristianismo com Opção
Preferencial pelos Pobres, mas sem Opção pelos Pobres, é funcional para qualquer
sistema injusto. A oposição à Opção pelos Pobres – e, em geral, à teologia
e à espiritualidade da libertação em cujo seio aquela nasceu – serviu como
o principal objetivo daqueles que tentaram reverter a renovação pós-conciliar
da teologia e da espiritualidade latino-americanas com Medellín e Puebla,
e como a volta a uma Igreja que legitima o sistema capitalista e neoliberal
que também hostilizou frontalmente a Igreja da libertação latino-americana
e a seus inumeráveis mártires.
Aplicado à Opção pelos Pobres, o adjetivo “preferencial”, ao implicar uma relação
de simples prioridade entre termos isentos de disjuntiva ou mútua exclusão,
desnaturaliza a Opção pelos Pobres, convertendo-a em uma simples prioridade
ou preferência de ordem, e isso também ao negar a possibilidade de uma opção
radical por um dos termos submetidos à relação de preferência. Por isso, rigorosamente
falando, a Opção Preferencial pelos Pobres não é Opção pelos Pobres, mas sim,
como expressaram seus teóricos, um simples “amor preferencial” ou uma “forma
especial de primazia no exercício da caridade cristã”. É uma prioridade, e nem
sequer é uma “opção”, no sentido forte da palavra[17].
A adição do adjetivo “preferencial” serviu em muitos casos como “cavalo de Tróia”
que introduziu na Opção pelos Pobres o germe de sua própria desnaturalização.
Felizmente, são muitos os que adotaram só externamente o uso do adjetivo, pelas
pressões do contexto ao seu redor, sem abandonar interiormente a compreensão
e a vivência radical do que é a genuína natureza da Opção pelos Pobres, não
preferencial, mas exclusiva e excludente.
Aplicações e corolários
Opção pelos Pobres : transcendental no
nível da norma normans.
Em seu sentido teológico-sistemático (antes,
portanto, ou mais além de sua aplicação concreta a mediações não-teológicas,
e bem distinta destas), a Opção pelos Pobres é um transcendental que ultrapassa
e atravessa as dimensões teológicas e pertence essencialmente à própria imagen
do Deus bíblico e cristão. Nosso Deus “é” – pelo mais nuclear da revelação
bíblica[18] e cristã, e por si mesmo – opção
pela justiça[19], com absoluta precedência e com total
independência de toda escola teológica ou de qualquer carisma ou espiritualidade
em que nos movamos. Nessa qualidade, a Opção pelos Pobres não é suscetível
de ser normada por dimensões subalternas[20]
(situa-se no nível máximo da norma normans); e, percebida em consciência,
deve ser obedecida como obediência a Deus mesmo, como disposição de espírito
para a prova do amor maior.
Neste mesmo sentido, a Opção pelos Pobres não é uma “teoria” da teologia latino-americana
da libertação, mas sim uma dimensão transcendental do cristianismo, dimensão
que essa teologia teve o mérito de redescobrir – para o cristianismo universal
– como vinculada à própria essência de Deus. Esta redescoberta é efetivamente
“o maior acontecimento da hisória do cristianismo nos últimos séculos”[21], e marca um antes e um depois para aqueles
que na sua Opção pelos Pobres fizeram uma experiência espiritual de conversão
ao Deus dos pobres, a qual não pode ser apagada e da qual não se pode mais retroceder.
A Opção pelos Pobres deve ser considerada como “firme e irrevogável” e como
uma “nota da verdadeira Igreja”.
Pobreza, riqueza e injustiça.
Com relação à identificação da Opção pelos
Pobres como opção pela justiça, podemos estender-nos em linguagem mais aplicada.
• Se a pobreza de uma pessoa ou grupo se
deve ao fato de que tenha sido vítima da injustiça[22]
– e nessa medida –, Deus está do lado desse pobre, contra sua pobreza, e contra
as causas dessa pobreza-injustiça. E está, necessariamente, de um modo “excludente”
da injustiça dos injustos, e não simplesmente com uma “opção preferencial
não excludente”.
Se se trata de alguma “pobreza” que não
tenha a ver com a justiça (“pobrezas naturais”, de raça, de gênero, de cultura…),
Deus não faz discriminações a respeito disso, nem “prefere”, nesse campo,
a ninguém. Deus não prefere nem despreza a nenhuma raça ou gênero ou cultura
por si mesmos.
• Se a riqueza de uma pessoa ou grupo implica
injustiça – e nessa medida –, Deus está decididamente contra essa riqueza,
contra o modo de vida que a gera, porque Ele está do lado dos que sofrem as
conseqüências da injustiça e está contra os que a causam. E está nessa atitude
de um modo necessário e de um modo que exclui essa injustiça, e não com uma
opção somente “preferencial pelo pobre”, mas sim radicalmente excludente do
“modo de vida do rico”[23]
que produz essa injustiça.
Se há alguma riqueza que não tem a ver com a injustiça (qualidades psicológicas,
gênero, dons corporais e/ou espirituais, acaso…) Deus não faz aí discriminações:
nem prefere nem despreza ninguém.
O conceito de justiça como mediação.
Logicamente, os princípios teológicos devem
necessariamente passar pelo filtro ulterior de diversas mediações filosóficas,
sociológicas e até políticas, na hora de serem postos em prática na arena
da realidade.
Por exemplo: o próprio conceito de “justiça”,
com todas suas implicações filosóficas, sociológicas, políticas e até culturais,
será uma mediação especialmente influente no campo desta “opção pelos pobres”.
Há um conceito capitalista de justiça, há outro socialista, há outro neoliberal,
há outro imperialista… as pessoas são influenciadas por um ou outro segundo
o “lugar social” que ocupam, ou pelo qual optam. Àquele para o qual a justiça
é simplesmente “dar a cada um o que é seu”, um mundo de extremas desigualdades
pode parecer justo se – por exemplo – só valoriza a atual legalidade da propriedade
privada absolutizada. Não o pareceria, porém, a nenhum dos Padres da Igreja,
nem a quem faça seu o conceito de justiça social distributiva e democrática
da doutrina social da Igreja, porque estas pessoas operam com um conceito
de justiça muito diferente.
Neste sentido, apesar de referir-nos teoricamente
a um mesmo Deus, e apesar de aceitarmos talvez como evidente sua opção pela
justiça, a visão da vontade de Deus sobre o mundo pode ser diversa ou até
contrária em uns cristãos e em outros. Onde está a origem dessa discrepância?
Poderia não estar no próprio conceito que
tenhamos de Deus nem de seu Projeto ou Vontade, mas sim no conceito de justiça
com o qual construímos nossos juízos morais. A origem pode estar no juízo
moral que, a partir do conceito de justiça de cada um, fazemos sobre a pobreza
e a riqueza e sobre os mecanismos sociais ou estruturas que as geram ou produzen,
se as julgamos como naturais ou como históricas, como fatais ou como corrigíveis,
como casuais ou como causadas, culpáveis ou inculpáveis, estruturais ou conjunturais,
produto essencial do sistema perverso ou subproduto acidental negativo de
um sistema social não necessariamente negativo. Assim, por exemplo:
- aqueles para os quais a atual divisão
tão desigual da riqueza no mundo (a famosa “taça de champanhe” dos informes
do PNUD) pareça “natural”, pensarão também – com boa lógica – que Deus não
se pronuncia sobre ela, ou que somente nos exorta à esmola, à beneficência,
à gratuidade generosa… para oferecer paleativos a essas lamentáveis diferenças
“naturais”…;
- aqueles, pelo contrário, para os quais
pareça que tal divisão do mundo é injusta e pecaminosa, pensarão – também
com boa lógica – que Deus está irritado com ela e que deseja ardentemente
que seja abolida, e que quer que o ajudemos a combater essa injusta desordem
com um compromisso radical pela justiça;
- a aqueles que pensem que essa situação
do mundo é o maior drama da humanidade atual..., lhes parecerá também que
sua superação urgente expressa a maior e mais premente vontade de Deus;
- aqueles que considerem que o neoliberalismo
é inocente, ou que é “o menos pior dos sistemas”.., pensarão que Deus quer
que o apoiemos, ou inclusive que o “melhoremos” em algumas de suas “deficiências
acidentais”;
- aqueles que, ao contrário, são de opinião
que o neoliberalismo é injusto, ou inclusive a maior injustiça, a mais estrutural,
pensarão que Deus quer que combatamos esta estrutura de pecado do modo mais
empenhado possível.
Pareceria claro, desta forma, que o problema
teológico dirige-se para a discussão e a análise das mediações, e que as discrepâncias
se situariam não no nível propriamente teológico dos princípios, mas no nível
prudencial das mediações. Contudo, isto é só a metade da verdade, porque nosso
conceito de justiça faz parte de nossa escolha de Deus. “Dize-me que entendes
por justiça, e te direi qual é teu Deus”. Dize-me em que justiça crês, e te
direi a qual Deus adoras.
Costumamos pensar que nosso conceito de
justiça nos venha do Deus em que cremos, mas tambémn o contrário é certo:
só cremos no Deus que cabe em nosso conceito de justiça. A opção mais fundamental
de nossa vida pode ser aquela na qual optamos por um conceito ou outro de
justiça, justiça que é ao mesmo tempo nossa utopia para o mundo. Nossa imagen
de Deus é filha da opção na qual escolhemos nosso conceito de justiça e sua
correspondente utopia para o mundo. E vice-versa: muitos não chegan a assumir
um conceito utópico de justiça porque previamente fizeram a opção pelo Deus
do egoísmo e de suas riquezas.
A Opção pelos Pobres é, pois, ao mesmo
tempo, uma opção por Deus (dos pobres) e uma opção pela justiça utópica (do
Reino). A “opção pelos ricos” é, ao mesmo tempo, uma renúncia ao Deus dos
pobres e uma opção por uma justiça resignada ao egoísmo. A opção pelos pobres
ou pelos ricos, a justiça utópica e a justiça resignada, e o Deus dos pobres
ou sua recusa, estão mutuamente implicados em um círculo hermenêutico. Nossa
obediência a Deus não se dá em relação direta com Deus, mas na escolha de
um ideal de justiça utópica ou de uma justiça resignada[24].
Princípios e mediações estão mais mutuamente implicados do que pareceria.
Deus é justo, e a justiça é divina. A opção pelos pobres é, ao mesmo tempo,
um ato de fé no Deus dos pobres e uma opção ética e humanizante pela justiça
(a dos pobres e a de Deus simultaneamente). De sua parte, a opção pelo egoísmo
é, ao mesmo tempo, uma injustiça e uma recusa de (do) Deus (dos pobres). Voltando
ao princípio, Deus e a Opção pelos Pobres não se podem separar, porque a Opção
pelos Pobres fundamenta-se em Deus mesmo, em Sua justiça. A gratuidade de
Deus é outro tema.
Publicado sobre papel em:
«Perspectiva Teológica» XXXVI/99(maio/agosto
2004)241-252 Belo Horizonte, Brasil.
«Vida Pastoral» 245(novembro-dezembro 2005)22—27, São Paulo (sem notas).
[1] “Digamo-lo com clareza: a razão última dessa
opção está no Deus em quem cremos. (...) Trata-se, para o crente, de uma opção teocêntrica, baseada em Deus”. G.
GUTIÉRREZ, “El Dios de la Vida”, Christus 47(1982)53-54, G. GUTIÉRREZ,
La fuerza histórica de los pobres, Lima, 1980, pp 261-262.
[2] Apesar de ser uma obviedade, ver a tese doutoral de J. LOIS,
Teología de la Liberación: opción por los pobres. Madrid: IEPALA 1986. Aí se estuda a Opção pleos
Pobres em vários dos principais teólogos da libertção do período clássico.
[3] Um caso claro pode ser o de Gustavo GUTIÉRREZ.
Em uma palestra pronunciada diante de Ratzinger, afirma: “A temática da pobreza
e da marginalização convida-nos a falar de justiça e a ter presentes os deveres
do cristão a respeito. Na verdade é assim, e esse enfoque é sem dúvida fecundo.
Mas não se deve perder de vista o que faz que a opção preferencial pelos pobres
seja uma perspectiva tão central. Na raiz dessa opção está a gratuidade do
amor de Deus. Este é o fundamenteo último da preferência”. A partir desse
momento, já não volta a aparecer a palavra “justiça” em sua dissertação e
toda a Opção pelos Pobres gira em torno à “gratuidade”. Cf. G. GUTIÉRREZ, Una teología da liberación en el contexto
del tercer milenio, in VÁRIOS, El futuro de la reflexión teológica
en América Latina. Bogotá: CELAM, 1996, p. 111. Não se trata de um texto isolado, mas sim, em minha
modesta opinião, de uma perspectiva suavizada comum na teologia da Opção pelos
Pobres de G. Gutiérrez já há mais de uma década; cfr. G. GUTIÉRREZ, Pobres
y opción fundamental, in Mysterium Liberationis, San Salvador,
UCA Editores, 1991, pp. 303ss, 310.
[4] Pobres que eram uma realidade “coletiva, conflitiva e socialmente
alternativa”: C. BOFF, ¿Quiénes son hoy los pobres, y por qué?, in
J. PIXLEY / C.BOFF, Opción por los pobres, Madrid: Paulinas, 1986,
pp. 17ss.
[5] Um amor igual para todos mas que começa pelos
pobres e continua pelos ricos, sem fazer entre eles nenhuma diferença; um
“amor igualitário, mas com uma orden de prioridade”, simplesmente.
[6] Quem opta “preferencialmente” pela justiça, opta
também, ainda que seja menos preferencialmente, pela injusticia. No dilema
de justiça e injustiça não há “simples preferências” possíveis: a opção está
diante de alternativas de uma disjuntiva excludente.
[7] Recordemos a posição teológica medieval (o “voluntarismo
ético”) de quem sustentava que a ordem moral atual não era necessário, mas
sim contingente, e que obedecia a uma vontade positiva e gratuita (arbitrária)
de Deus. A ordem moral – esta doutrina sustentava – teria podido ser outra,
inclusive a contrária da atual, se Deus assim o tivesse querido em um inescrutável
desígnio arcano de sua vontade.
[8] J.M. VIGIL, Opción por los pobres, ¿preferencial
y no excluyente?, in J.M. VIGIL, Sobre la opción por los pobres,
Santander: Sal Terrae, 1991, pp. 57ss. Editado também na Nicarágua (Editorial
Nicarao, 1991), Chile (Rehue, 1992), Colômbia (Paulinas, 1994), Equador (Abya
Yala, 1998), Itália (Citadella, 1992), Brasil (Paulinas, 1992).
[9] Como quando se argumentava que os ricos eram
os verdadeiros pobres (pobres em riquezas espirituais, das quais os pobres
materiais eram muito ricos)… Chegou-se a verdadeiros jogos de palavras ou
malabarismos conceptuais para não entender o óbvio. Casaldáliga deu testemunho
poético disso em suas Bem-aventuranças da conciliação pastoral.
[10] Pobreza de espírito, pobres de Javé, virtude
da pobreza, anawin, infância espiritual…
[11] “Opção pelos injustiçados” é uma expressão precisa,
que escapa à possibilidade de ser mistificada ou metaforizada.
[12] Como é o caso das pobrezas “naturais”, não históricas,
sem culpa de ninguém.
[13] Por isso os novos sujeitos não necessitam de
uma “opção” pela mulher, pelo/a indígena ou afro… uma vez que a própria opção
pelos “injustiçados” inclui a todos/as eles/as.
[14] “Definição essencial”, no dizer da lógica clássica,
é aquela que não somente discrimina adequadamente seu objeto, mas que o faz
em referência à sua essência (e não, por exemplo, com base em um ”próprio”
ou a um conjunto de acidentes suficientemente discriminante.
[15] J.M. VIGIL, Opción por los pobres, ¿preferencial y no
excluyente?, in J.M. VIGIL, Sobre la opción por los pobres, Santander:
Sal Terrae, 1991, pp. 57ss.
[16] O das classicamente chamadas “obras de misericórdia”;
por isso, a Opção Preferencial pelos Pobres pode ser chamada com propiedade,
efetivamente, “amor preferencial pelos pobres”. Isso é o que é. A Opção pelos
Pobres é outra coisa.
[17] O ato pelo qual uma pessoa faz sua Opção pelos
Pobres ou escolhe seu lugar social participa do caráter antropológico existencial
que a assim chamada “opção fundamental” tem.
[18] Deus não tem favoritismos (Rm 2,11). O Soberano
de todos não faz diferença entre as pessoas e não fará caso de grandeza (Sb
6,7). Um juízo implacável espera os poderosos; o pequeno tem desculpas e merece
compaixão, mas os poderosos serão castigados severamente. Ele criou os grandes
e os pequenos e de todos cuida igualmente. Os poderosos serão examinados com
mais rigor. (Sb 6,6.7b.8). Mestre,
sabemos que és justo e que não fazes acepção de pessoas… (Mt 22,16). O ser
humano olha as aparências, mas Javé olha o coração… (1Sm 16,7).
[19] “A luta pela justiça é como outro nome do Deus
do Antigo Testamento e do Deus de Jesus»: R. VELASCO, La Iglesia
de Jesús, Estella: Verbo Divino,1992, p. 33.
[20] Eclesiásticas ou disciplinares, por exemplo.
[21] “Persoalmente opino que com a opção preferencial
pelos pobres produziu-se a grande e necessária revolução copernicana no seio
da Igreja, cujo significado transborda o contexto eclesial latino-americano,
concerne à Iglesia universal. Sinceramente, creio que esta opção significa
a mais importante transformação teológico-pastoral aconctecida desde a Reforma
protestante do século XVI». L. BOFF, citado por J. LOIS, Teología de la liberación:
opción por los pobres, Madrid: IEPALA, 1986, p. 193.
[22] É o que se queria dizer com a preferência do
adjetivo dinâmico “empobrecidos” (como dinâmico é também o conceito de “injustiçado”)
sobre o nome estático de “pobres”.
[23] Por “modo de vida do rico” entendemos tudo o
que implica o rico – exceto sua própria pessoa –: seu estilo de vida, seu
papel social, a Causa à qual objetivamente serve, seu luxo, sua exploração
dos pobres, sua participação no sistema que os explora…
[24] Casaldáliga expresava o conflito entre os dois
deuses e as duas justiças em seu poema “Equívocos”: Onde tu dizes lei / eu
digo Deus. / Onde tu dizes paz, justiça, amor, / eu digo Deus! / Onde tu dizes
Deus, / eu digo liberdade, / justiça, / amor!
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