Servicios Koinonía    Koinonia    Vd esta aquí: Koinonía> Páginas neobíblicas > 035
 

 

Amai-vos

Iara ALVES TEIXEIRA


 

A História transcorre e os dias em nada acrescentam o vazio em expansão. A rotina sufoca e, mais uma vez, estou ali, em pé, vivendo a angustiante espera de um coletivo que não chegava. A chuva caía fina, e o dia pesava em minhas costas. A incômoda pasta de carregar livros e o indesejável salto da sandália acentuavam a minha má postura.

Inquieta pelo instinto da sobrevivência, eu registrava cada ruído de aproximação. Exigia-se precaução àquela hora que precedia a meia-noite no centro da cidade, afinal, é por aqui que andam os monstros que nos ameaçam e nos satirizam.

Numa época primitiva, talvez eu pudesse temer a presença de um animal, por exemplo, de grande porte que ameaçasse a nossa sobrevivência. Hoje, porém, estamos mais primitivos do que nunca. Temo o próprio ser humano. Temo a sua imensurável capacidade que lhe deu suporte tanto pra acabar com a estabilidade vital do planeta quanto para marginalizar e aprisionar muitos de nossa espécie à fome e à miséria.

Uma escura esquina escondia os grosseiros traços de um homem que se aproximava. A espinha gelou-me de súbito. A sensação de perigo fez-me recordar das últimas palavras de Jesus na cruz: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito(Lc. 23-46)”. Os braços apertam impetuosos a pasta contra o peito. As pernas preparavam-se para a fuga. Seu caminhar não cessava. “Pai, porque me abandonastes (Mt. 23-16)”. A presença estranha acorrentava-me e tinha a sensação de que eu já não podia fugir do perigo.

Percebo, então, que seus passos eram lentos e pesados. Isso talvez não comprometeria a minha segurança. Pouco a pouco, sua figura transparecia. Era um mendigo. Seu rosto acusava tristeza e sofrimento. Pressentia que me fosse pedir algo, porém atravessou a calçada indiferente. Parou perto de um bar, de frente a um portão de ferro.

A mulher, insistente, esfregava o chão, sujo de “catarro” e cachaça, com sabão. Vez por outra, expulsava com a vassoura os bêbados restantes, que cambaleavam entre as cadeiras sujas e “preguentas”. Na rua deserta, a espuma ilustrava o asfalto e a brisa da noite consolava-me à espera do demorado coletivo.

- Saia, saia daqui, bêbado fedorento – a mulher, insistente, espantava os homens.

O mendigo pôs-se de joelhos, enfiando o seu braço em uma brecha do portão. Espremia o seu corpo contra aquela grade de ferro, e parecia querer alcançar algo. Na rua vazia, eu observava os movimentos daquele indigente. Fui testemunha de suas ações naquele momento. De repente, trouxe à mão um pequeno embrulho num saco plástico. Levantou-se despercebidamente e veio em minha direção. O que pegara já estava em sua mochila descosturada. O mau cheiro de seu corpo azedava a gelada brisa da noite. A sujeira e o cascão de feridas eram como carapaças para seus membros. A mulher apressava-se a enxaguar o chão já reluzente.

O pobre homem sentou-se no banco da parada de ônibus onde eu estava. Cabisbaixo, pôs a mochila rasgada nas pernas e trouxe à mão o embrulho que havia pegado. Certamente havia algo de algo valioso ali, que poderia ser vendido a um baixo preço em busca de um trocado. Fitava o conteúdo do saco e, com uma discreta expressão de felicidade, enfiou os dedos ásperos no embrulho, trazendo à boca um punhado fétido de arroz e feijão azedos. Parecia saciar-se.

À medida que a comida escorria pelos cantos da boca, sentia-me tão desprezível ao lembrar-me de que cheguei a pensar que aquele pobre homem pudesse fazer-me algo de mau. Não consigo mais fitá-lo, sentindo este cheiro putrefato e vendo-o regurgitar para dentro de si aquela comida imunda. Viro o rosto. Há dois jornais cobrindo os corpos vivos de dois garotos de rua. O levantar e o baixar do jornal são a única prova de que estão vivos. As paredes enegrecidas pela fumaça dos carros fazem-me sentir sufocada. A mulher a falar impropérios com o cheiro de sabão vagabundo fazia-me querer parar de respirar. “Pai, porque me abandonaste (Mt. 23-16)?” Pai, porque NOS abandonastes?! Pai, porque abandonaste teu povo tão confrangido, massacrado e humilhado?

Todos os dias, deparo-me com seres humanos dilacerados em seu espírito e sobrecarregados em seus corpos. Seus rostos refletem isso, e muito mais! Refletem a dor e o sofrimento da extrema exploração dos seres humanos, acostumados a ser meras cartas repetidas de um baralho infame e desgraçado. E sou uma dessas cartas tão descartáveis ao prazer de poucos! Ensinaram-nos a sentir-se impotentes e tentam apagar a chama da vitalidade que nos permite enxergar a possibilidade de uma vida melhor, mais justa e humana. Humanidade! É isso que nos falta: perceber a humanidade que há em cada um de nós. Enxergar que cada ser humano tem seu valor e sua dignidade, que não somos apenas cartas, peças ou ferramentas que podem ser jogadas fora. Porque esquecem que temos sentimentos? Será que esqueceram os deles? “Amai-vos uns aos outros como a si mesmo”: máxima que deveria ser ecoada em todos os corações e em todos os ângulos desta Terra. Temos que redescobrir o amor, redescobrir o homem, a humanidade e a própria vida! “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância (Jo. 10-10)”. Que não seja preciso Jesus voltar novamente para que a mensagem seja escutada e posta em prática. Que cada um de nós assuma, então, o compromisso de mudar a si mesmo, fazendo valer, de fato, as palavras de Jesus, evitando, assim, a extinção da humanidade através de suas próprias mazelas.

A mulher baixava a grade de seu bar. Os bêbados dispersavam-se no silêncio da noite. A chuva caía tranqüila e o dia pesava em minhas costas. Ao longe, o ônibus, vagaroso, despontava.

 

Iara Alves Teixeira

Fortaleza- Ceará, Brasil

 


 



  Portal Koinonia | Bíblico | Páginas Neobíblicas | El Evangelio de cada día | Calendario litúrgico | Pag. de Cerezo
RELaT | LOGOS | Biblioteca | Información | Martirologio Latinoamericano | Página de Mons. Romero | Posters | Galería
Página de Casaldáliga | La columna de Boff | Agenda Latinoamericana | Cuentos cortos latinoamericanos